Parâmetros para a Análise das Eleições de 2010

VOX POPULI, VOX DEI. Geralmente utilizada para ressaltar que o regime democrático consiste numa forma de governo na qual a vontade popular deve ser obedecida à risca, a tão erroneamente consagrada “a voz do povo é a voz de Deus”, de fato, vem sendo a tônica dominante nas campanhas eleitorais nos últimos 40 ou 50 anos nos países que adotam essa forma de governo. Apesar de não conter o dispositivo da soberania direta, preconizado pelo primeiro e grande teórico defensor da democracia, Jean Jacques Rousseau, levado ao extremo, esse mote implica na aceitação de que a vontade majoritária deve ser ouvida, cortejada, promovida quase sem limites. Os representantes deixariam de ser líderes políticos e passariam a ser liderados pelos representados, transfigurados em “marionetes” que abrem a boca pelas mãos e falam com a voz do “povo”. Ou, então, num jogo estratégico retórico, os representantes falam aquilo que o “povo”, em sua maioria, quer ouvir, mas não pretendem ou não têm condições de realizar, de fato, o que irresponsável ou falsamente prometeram. No primeiro caso, haveria o perigo da tirania da maioria; no segundo, o perigo da degeneração do governo democrático em demagogia. Obviamente, também é possível uma forma de governo degenerada mista: a tirania demagógica.

    Em realidade, ao que consta, a expressão vox populi, vox dei traduz a preocupação de personalidades políticas e religiosas com o advento histórico da democracia. O problema vislumbrado era a disseminação da crença inabalável na ideia de que, no mundo temporal, a soberania passaria a residir na vontade inquestionável de um novo deus: o “povo”. Então, a alusão à vontade popular como sendo a vontade de Deus, tinha conotação negativa, pois explicitava que a democracia poderia induzir à falsa e “perigosa” concepção de que a vontade popular é sempre certa e infalível, tal qual a vontade de Deus: o “povo” sabe de tudo, está por toda a parte e, portanto, pode tudo.
    Mas havia ainda outro problema: como o “povo” é uma grande abstração e decisões consensuais praticamente não existem, na prática, esse novo deus não seria nada mais do que a vontade majoritária. Sem maiores cuidados e limites, indivíduos e grupos minoritários poderiam ser tiranizados em nome da democracia, em nome da vontade do demos, um deus que poderia se tornar tão violento e vingativo como aquele do velho testamento. Pensadores liberais, como Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville, foram alguns dentre aqueles que chamaram a atenção para tais aspectos. Para eles, a vontade majoritária teria de encontrar seus limites nos direitos individuais fundamentais, por intermédio de algum mecanismo que pudesse equilibrar a vontade majoritária com certas garantias às minorias.
    Seja como for, do ponto de vista histórico, a democracia representativa acabou se tornando o regime político predominante no mundo contemporâneo. A democracia passou de uma forma de governo considerada problemática e degenerada, desde a Grécia clássica até o Século XIX, à única forma de governo legítima e aceitável. A força de sua legitimidade é tão grande que, na atualidade, a teoria das formas de governo acabou se reduzindo a apenas dois tipos: ou democracia ou, então, alguma forma de ditadura. Em realidade, o grande debate que mobiliza teóricos, políticos e cidadãos em geral se da em torno dos modelos alternativos de democracia e não acerca de algum modelo alternativo à democracia.
    A despeito das variações nos desenhos constitucionais, o fato é que as democracias contemporâneas partilham de algumas características básicas. Todas elas combinam o sistema de divisão dos poderes com a soberania popular, que se manifesta por meio da vontade majoritária, mas que encontra limites em direitos individuais fundamentais inscritos nas Constituições. Essa vontade majoritária se manifesta por meio de processos de decisões coletivas, de escolhas sociais entre certas alternativas publicamente apresentadas. Assim, no templo da democracia, a liturgia por meio da qual essa deidade, o “povo”, expressa seus desejos, seus interesses e suas preferências constitui o processo eleitoral. Por meio dele, a vontade majoritária se pronuncia acerca das políticas que devem ser seguidas e indica quem serão seus representantes nessa tarefa.

PARADOXO DEMOCRÁTICO. A vontade majoritária expressa o debate agendado pelas lideranças políticas ou, pelo contrário, as lideranças políticas, na verdade, são lideradas pela vontade majoritária que, assim, impõe os termos do debate? Essa tem sido a grande preocupação de alguns teóricos. Cortejar a vontade popular, dizer o que o “povo” quer ouvir traria sérias conseqüências para a própria efetividade dos governos representativos. Promessas que não serão cumpridas são feitas, gerando frustrações com a própria democracia; propostas de políticas irresponsáveis que, quando implementadas, criam dificuldades administrativas e orçamentárias, levam ao enfraquecimento da capacidade de execução de outras políticas públicas e, por extensão, a novas insatisfações com o governo e com o regime. Além disso, dizer simplesmente o que o “povo” quer ouvir pode levar a políticas conservadoras, pois novos caminhos ainda não visualizados pela maioria sequer entram na pauta do debate público. Isso sem contar que se todas as “lideranças” políticas investirem nessa estratégia demagógica, praticamente não haverá diferenças substantivas entre os postulantes aos cargos representativos. Se todos dizem as mesmas coisas, a própria escolha fica comprometida, porque não há uma escolha verdadeira em questão.
  Aqueles que se preocupam com esse fenômeno encontram evidências do descontentamento com a democracia nos crescentes índices de abstenção eleitoral nos países de democracias mais antigas - conforme pode ser visto no gráfico ao lado. Além disso, a identificação partidária nos países europeus vem se reduzindo desde a década de 1960, e o descontentamento com os políticos, com as instituições representativas e até mesmo com a democracia é cada vez mais significativo, como mostram diversas pesquisas de política comparada que se baseiam em séries históricas de enquetes. Os efeitos sucessivos desse fenômeno seriam o seguinte: o desencanto com os políticos se transforma em desencanto com a política e pode se transformar em desencanto com a democracia. Por isso, segundo os críticos, a utilização das estratégias de marketing na competição eleitoral, com o mapeamento da vontade majoritária ou do consumidor de políticas para a produção de um discurso sintonizado com aquilo que o “povo” quer ouvir, ou seja, o "endeusamento" do "povo", é o caminho mais seguro para a simplificação dos problemas sociais, para a manipulação dos desejos e interesses, para o conservadorismo moral e sócio-econômico e, finalmente, para a frustração com a política e a democracia.
    Porém, se a democracia representativa é uma forma de governo na qual prevalece a posição majoritária, como exigir que políticos e partidos que nutrem a ambição genuína e legítima de ocupar os cargos representativos façam outra coisa que não agir em consonância com a vontade da maioria? Afinal, não é possível chegar ao governo sem contar com os votos da maioria dos eleitores; não é possível governar de maneira satisfatória sem contar com o apoio da maioria dos eleitos. Defender novos valores, sintonizados com alguma minoria, não conduzem aos postos de governo, pois não resulta em votação suficiente para obter a maioria necessária para ser eleito. E mesmo para que já está no governo, a tarefa de diferir da vontade majoritária é maior do que as tarefas de Hércules, pois tentar implementar políticas inovadoras, sintonizadas com as preferências minoritárias, não resulta em apoio majoritário nas casas legislativas, o que significa que tal comportamento será inócuo, ingênuo ou até temerário, com sérias chances de conduzir a situações de impasse e crise institucional.
   Talvez não exista uma alternativa a esse paradoxo. Talvez, de fato, nas democracias prevaleça forçosamente a máxima vox populi vox dei. Trata-se de um deus numérico, quantitativo, intrínseco à vontade majoritária. Por um lado, as decisões democráticas ocorrem sempre sob a regra majoritária; por outro, mapear essa vontade e agir em sintonia com ela provoca, no limite, o desencanto com a própria democracia. Seria então a frustração e o desencanto o preço que teríamos a pagar pela liberdade e os direitos fundamentais propostos pelo liberalismo e somente garantidos pelos paradoxais regimes democráticos?
    Alguns poderão dizer que uma saída possível a esse paradoxo seria o investimento numa ação de verdadeira liderança política, ou seja, em discursos inovadores que procurem mudar as opiniões, formando uma “nova” vontade majoritária. Embora seja teoricamente possível, há dois problemas nessa estratégia. Em primeiro lugar, quem fizer isso enfrentará a inércia da vontade majoritária já constituída, que será cortejada por outros políticos mais pragmáticos. Em segundo lugar, procurar atuar na formação de uma “nova” vontade majoritária significa que ela ainda é minoritária e, portanto, dificilmente será transformada em vontade majoritária no curto prazo. Ou, então, isso significa que não se trata propriamente de uma “nova” vontade majoritária, mas sim de outra vontade majoritária que estava em segundo plano ou de uma vontade majoritária antiga que estava “adormecida”. De uma forma ou de outra, ainda se trata de cortejar a vontade majoritária. Inclusive, no caso de ressuscitar uma vontade majoritária antiga, isso pode consistir na abertura da "caixa de pandora", deixando que se aflorem preconceitos e conservadorismos ainda mais radicais.

AS ELEIÇÕES BRASILEIRAS. Agora, pensemos nas eleições brasileiras deste ano. Será que essas considerações poderiam nos ajudar a fazer uma análise mais abrangente desse processo? Acredito que sim. Mas, deixo isso por conta do leitor, inclusive porque penso que, ao invés de apresentar fatos, números e qualquer tipo de futurologia acerca do novo governo, que podem ser facilmente encontradas em jornais, ou ainda interpretações unilaterais como as que já pululam pela internet, o mais interessante é dar um instrumental analítico ou uma heurística que possa levar o leitor ao exercício de interpretação por conta própria. Verá, nobre leitor, que várias peças do jogo eleitoral se encaixarão e a política - em geral, e a brasileira, em específico - passará a ser vista como uma atividade humana cheia de dilemas e paradoxos de difícil resolução.
    Então, procure analisar quem conduziu a vontade majoritária estabelecida e quem tentou trazer à tona outra vontade majoritária, baseada em outros temas, com o objetivo de conquistar o poder. Quem tentou construir uma “nova” vontade majoritária e teve de lidar com a inércia da vontade majoritária predominante? Avalie as conseqüências práticas de cada estratégia, seus resultados e, inclusive, os contra-factuais; ou seja: e se Marina tivesse vencido, teria condições de implementar uma “nova” política? Se não tivesse tais condições, o que poderia ocorrer? Ela se resignaria à vontade majoritária e à "velha política"? Ela tentaria se impor diante do Congresso, mantendo sua proposta original, mesmo sendo de um governo minoritário? Para fazer curvar o Congresso diante de sua vontade, poderia "apelar" para o apoio das ruas? Quem e quando vimos a mesma coisa em nossa história política recente? Quais foram as consequências disso? E se, por outro lado, a estratégia de impor uma decisão eleitoral baseada em valores morais conservadores, como foi o caso de Serra, realmente prevalecesse, que consequências políticas teríamos a partir da formação de uma vontade majoritária antiga reavivada? E a prevalência da atual vontade majoritária, como foi o que ocorreu com a vitória de Dilma, que consequências tem para a política brasileira e as instituições democráticas do país? A maioria ampla que deve lhe apoiar no Congresso facilita a governabilidade, mas o que provoca no caso das vontades minoritárias?
    Visto desse modo, o processo eleitoral pode levar ao desencantamento. Mas, ao mesmo tempo, esse desencantamento com a política e as eleições deixará de ser frustração para ser o que deve ser:  a renúncia a ver a política como uma atividade encantada, mágica, na qual tudo é possível a partir de um simples ato de vontade.

3 comentários:

Vinícius disse...

muito bom o texto, assim como o blog.

O Blog dos Poetas Vivos disse...

Nossa, o último parágrafo me fez lembrar da tuas aulas "cheias de desencantamento".

Vinícius Portella disse...

Paulo,

gostei muito do seu texto. E acho que ele aponta para certas tensões em meio às quais a democracia moderna se desenvolveu e, ao que parece, terá de lidar perenemente. Tendo em vista o conflito social moderno, houve quem dissesse que a melhor maneira de solução desses impasses não estaria na busca de "consensos amplos" cada vez mais difíceis em sociedades complexas e, praticamente, impossíveis dada a elevadíssima variedade de valores e de interesses presentes nelas; estaria, sim, nos avanços da institucionalização dessas disputas e no acerto quanto às regras do jogo e a manutenção da possibilidade de questionamento pela sociedade em geral. É claro que não existe receita de bolo para o problema, as correlações de forças não são fixas, e é um grande mérito do texto contribuir para a percepção dessas tensões.

Um forte abraço!

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