Ficha Limpa: Legislação para Eleitor ver?

CAIU A FICHA... LIMPA. O projeto denominado Ficha Limpa, aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados, foi sancionado, sem vetos, pelo Presidente Lula nesta última sexta-feira, dia 05, e publicado no Diário Oficial da União de hoje. Esse projeto torna inelegível por oito anos qualquer possível postulante a cargo representativo que tenha sido condenado – crimes eleitorais que levem à prisão, improbidade administrativa, abuso de poder político e crimes dolosos com penas superiores a dois anos – por mais de um juiz, ou seja, por decisão colegiada. Entretanto, fica garantido ao condenado o que vem sendo chamado de “efeito suspensivo”, o que significa que ele pode solicitar, com prioridade e rapidez garantidas, que sua condenação seja reavaliada por outro colegiado da Justiça, com a finalidade de obter a suspensão da decisão anterior.
    O Ficha Limpa é um projeto de iniciativa popular, coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral [MCCE], uma organização composta por 44 entidades de grande representatividade [membros nacionais]. Foi protocolado no Poder Legislativo em Setembro de 2009 e conseguiu a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores. Veja abaixo uma das peças de propaganda do MCCE.


    
    De lá pra cá, até a sanção presidencial, houve pelo menos duas alterações substantivas na versão original, realizadas pelo parlamento. Inicialmente, o projeto propunha que fossem considerados inelegíveis todos aqueles que tivessem sido condenados em primeira instância, o que, obviamente, dava maior amplitude à aplicação da medida. Porém, esse dispositivo foi alterado e a punição passou a ser aplicada apenas aos condenados por colegiados da Justiça, reduzindo-se a incidência dos casos às condenações de segunda instância ou de foros privilegiados. 
    A segunda redução da incidência da lei ocorreu com a alteração que o senador Francisco Dornelles [foto ao lado], do PP do Rio de Janeiro, promoveu com sua emenda, digamos, "gramatical" numa frase, modificando seu tempo verbal. Assim, onde se lia que a punição aplicar-se-ia aos que “tenham sido” condenados, agora se lê que a punição será imposta aos que “forem” condenados. Portanto, a lei terá validade para os casos futuros, fazendo do passado nada mais do que “águas passadas...”, o que significa garantir a elegibilidade até mesmo de Maluf um dos pouquíssimos que seriam atingidos pela nova regra.
    Seja como for, agora finalmente convertido na Lei Complementar 135, o Projeto Ficha Limpa provocou enorme satisfação em diversas pessoas, preocupadas com a “moralidade” política, especialmente porque, segundo elas: (1) tratou-se de um projeto de iniciativa popular, um instrumento constitucional de democracia direta ou “semi-direta” - dependendo de como se teorize a questão -, que possibilita o fortalecimento da sociedade civil; (2) apesar das alterações no projeto original, o mais importante é que, durante alguns meses, fez-se ampla discussão acerca do tema, colaborando para o maior envolvimento da população com os processos políticos do país; e (3) trata-se de mais um tijolo numa estrutura legal que vem sendo desenhada lentamente e que resultará num edifício político mais transparente e sujeito ao controle público. Aliás, a lei de combate à corrupção eleitoral e o fim do voto secreto no parlamento seriam os outros dois tijolos já assentados sobre os quais essa nova lei é cimentada.
    Porém, em que medida as alterações promovidas pelos parlamentares não teriam tornado a medida inócua, fazendo crer que se avançou bastante no processo de "moralização" política quando todo o debate e a letra da lei não passariam de "sofismas" para "eleitor ver"? E ainda, esse projeto de iniciativa popular, de fato, representaria o fortalecimento desse mecanismo de democracia participativa instituído pela Constituição de 1988? Depois de mais de 20 anos de vigência da Constituição cidadã, segundo a célebre apresentação da carta magna à sociedade pelo constituinte Ulisses Guimarães, qual o real grau de utilização desse instrumento pela Sociedade Civil brasileira? O parlamento dispõe de recursos e instâncias adequados para o acolhimento e a rápida tramitação de projetos dessa natureza? E como harmonizar o paradoxo constitucional imposto por essa lei complementar, que prevê alguma forma de punição antes da condenação final, "flexibilizando" o pressuposto da inocência até que se prove o contrário e que se julgue, em definitivo, o acusado?


QUEM TERÁ A FICHA SUJA COM A LEI FICHA LIMPA? Todo o estardalhaço envolvido no debate iniciado pelo Projeto Ficha Limpa e toda a comemoração com sua aprovação pelo parlamento e, agora, com a sanção presidencial, não podem esconder um fato rodriguiano, ou seja, um óbvio ululante: pouquíssimos casos poderão ser enquadrados na nova lei. Com a alteração na versão original, estabelecendo que a inelegibilidade somente será aplicada aos condenados por colegiado da Justiça, reduziu-se significativamente o escopo da medida.
   Num levantamento realizado pela Folha de São Paulo, foi possível identificar que, dentre os 73 congressistas de São Paulo da atual legislatura [70 deputados federais e 3 senadores], 37 estavam em um destas três situações: ou já foram condenados em primeira instância, ou foram indiciados ou já são réus. Mas, como não foram condenados por um grupo de juízes [segunda instância ou foro privilegiado], nenhum deles estaria sujeito  à aplicação da nova lei. Na verdade, quando consideramos ainda os 37 líderes partidários do estado, apenas um seria enquadrado na segunda versão da lei - Paulo Maluf. Porém, com a emenda "gramatical" de Francisco Dornelles, coincidentemente colega de partido e amigo de Maluf, nem mesmo o líder do PP seria impedido de se candidatar, pois, na versão final, a aplicação da lei não pode incidir sobre o que já foi julgado antes de sua sanção pelo Presidente da República.
    Além disso, outro grande problema é que aqueles que já ocupam cargos eletivos têm direito ao foro privilegiado, instância na qual a morosidade do processo é considerável. Assim, enquanto não sai nenhuma condenação dessa instância, todos os acusados continuam gozando dos direitos de elegibilidade. Portanto, dos poucos casos que virão a se enquadrar na nova lei, a maior parte deles provavelmente compreenderá candidaturas novas. Isso porque os candidatos novos, ou seja, aqueles que não ocupam nenhum cargo eletivo no momento da candidatura, não dispõem de foro privilegiado, e o julgamento de seus casos pode ocorrer com um pouco mais de rapidez - mas, claro, a rapidez do sistema judicial brasileiro. Então, se nem Maluf se enquadra na lei, quem seria pego por ela?


PROJETOS DE [BAIXA] INICIATIVA POPULAR. Apesar da Constituição brasileira instituir o mecanismo da apresentação de projeto de lei de iniciativa popular, regulamentado pela Lei 9709/98, que também regulamenta referendos e plebiscitos, até o momento, apenas 4 projetos desse tipo foram aprovados. Há duas razões para isso: em primeiro lugar, o número de projetos de iniciativa popular apresentados é baixíssimo, em decorrência das dificuldades de serem cumpridas todas as exigências formais para que tais projetos sejam protocolados na Secretaria-Geral da Mesa da Câmara; em segundo lugar, porque essa Secretaria-Geral já se pronunciou incapacitada para receber e protocolar devidamente os projetos de iniciativa popular.
   As dificuldades para a apresentação desse tipo de projeto residem nas exigências constitucionais estabelecidas para tanto: (1) deve ser apresentado na Câmara um abaixo-assinado que subsidie a proposta, (2) o projeto deve ser subscrito por pelo menos 1% do eleitorado nacional, (3) as assinaturas devem ser distribuídas por pelo menos cinco estados, (4) para cada estado não deve haver menos do que três décimos por centro dos eleitores totais de cada um deles e (4) junto com as assinaturas devem constar os números dos respectivos títulos eleitorais. Assim, a logística para a coleta das assinaturas é bastante complexa, sem contar que quase nunca os eleitores, geralmente abordados na rua, carregam consigo seus títulos eleitorais, nem lembram de seu número. Coletar apenas a assinatura não é suficiente; supor que o eleitor volte no dia seguinte para preencher o número do título também é inconcebível, pelo menos para a maioria dos casos. Desse modo, os projetos de iniciativa popular acabam sendo projetos de iniciativa de algumas grandes organizações sociais.
    Mas, mesmo que se consiga cumprir todas as exigências, há um segundo grande obstáculo a ser vencido, e o retrospecto não tem sido nada favorável à iniciativa popular. A Secretaria-Geral da Mesa da Câmara, responsável por receber e protocolar os projetos, tem a incumbência de verificar toda a documentação e atestar a autenticidade das assinaturas e dos respectivos números dos títulos eleitorais. Diante disso, a Secretaria já se declarou incapacitada para a tarefa: não dispõe de recursos, nem de qualquer rotina tecnológica para conferir cada uma das milhares de assinaturas, bem como os números dos títulos de eleitor. Surgiu, assim, um paradoxo institucional-burocrático: para iniciar sua tramitação, o projeto de iniciativa popular precisa do protocolo da Mesa da Câmara, mas esta não autentica as assinaturas e, portanto, trava o processo legislativo já em seu nascedouro. A solução encontrada até agora foi a seguinte. Algum deputado ou grupo de deputados que simpatizarem com a causa "patrocinam" o projeto, ou seja, assinam o projeto para que seja iniciada sua tramitação sem maiores entraves. Dos quatro projetos aprovados até agora, três deles tiveram esse percurso. Então, os projetos de iniciativa popular, em sua grande maioria, conseguem tramitação somente quando deixam de ser projetos de iniciativa popular e se transformam em projetos de iniciativa parlamentar.
    Há ainda um terceiro obstáculo nessa via crucis desses projetos. Quando finalmente entram no processo legislativo, tramitam com uma vagareza desalentadora. O primeiro projeto de iniciativa popular aprovado, que estabeleceu o Fundo Nacional de Habitação, foi protocolado em Janeiro de 1992, e somente foi sancionado em 2005. A própria lei de combate à corrupção eleitoral [Lei 9840/99], que até já contribuiu para a cassação de vários políticos brasileiros, e que está associada ao Projeto Ficha Limpa, percorreu um longo caminho até ser sancionada. Embora sua tramitação tenha ocorrido em apenas 42 dias, foi extremamente demorado e difícil o processo de coleta de assinaturas e de seu acolhimento pela Mesa da Câmara. O projeto teve início na CNBB, em 1997, e encontrou sérias dificuldades para recolher todas as assinaturas necessárias de acordo com os critérios estabelecidos. Depois de envolver algumas centrais sindicais, a OAB e vários veículos de comunicação na campanha, finalmente foi atingido o montante necessário de assinaturas e o projeto foi entregue à Secretaria-Geral em 1999. Mas, então, constatou-se a impossibilidade de validação das assinaturas e a alternativa foi o "patrocínio" parlamentar: 11 deputados subscreveram o projeto em nome de seus partidos e outros 5o deputados assinaram o documento em apoio individual.
    Mais recentemente, outra possibilidade de projetos de iniciativa popular foi aberta, com a criação da Comissão de Legislação Participativa [CLP], em 2001. Os projetos, nesse caso, devem ser apresentados por entidades civis e as exigências são mais simples. Inclusive, esse mecanismo tem se mostrado um pouco mais ativo do que os PL de iniciativa popular com assinaturas individuais. Até o momento, foram apresentadas cerca de 300 propostas à CLP. 
    De qualquer modo, é extremamente baixa a utilização desses mecanismos de democracia direta ou semi-direta, incluindo-se os referendos e plebiscitos. Estes dois últimos, obviamente, dependem da iniciativa dos Poderes Constitucionais, mas os projetos de iniciativa popular, como o próprio nome diz, dependem da iniciativa do demos. Será que apenas as dificuldades operacionais impedem seu uso mais sistemático por parte da Sociedade Civil? Haveria alguma componente cultural nos meandros desse fenômeno que ajudariam a explicá-lo? Afinal, a participação não é reduzida apenas nao que se refere à utilização desses mecanismos constitucionais, mas igualmente em outras formas de manifestação mais informais, como os protestos públicos e as reivindicações.


PARADOXO CONSTITUCIONAL? O fundamento jurídico do Projeto Ficha Limpa foi buscado por seus proponentes no Artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição Federal. Lá se estabelece que os critérios de elegibilidade deverão ser fixados por legislação complementar e que tais critérios devem levar em consideração a trajetória do candidato. Com base nisso, o projeto, agora transformado em lei, propõe que seja impedido de se candidar pessoas que venham a ser condenados por órgão colegiado. Mas, da outra margem do rio vêm declarações de protesto contra o fundamento da nova lei. Na mesma Constituição Federal há garantias individuais que têm como pressuposto a inocência de todos até que o julgamento seja concluído e o réu definitivamente condenado. 
     Os defensores do projeto, em réplica, alegam que a punição não tem caráter criminal, mas preventivo, ou seja, ninguém será preso, apenas se previne que entre em cargos eletivos possíveis corruptos. Os críticos, em tréplica, argumentam que, de um modo ou de outro, trata-se de punição antecipada e que impedir alguém de se candidatar é tolher sua liberdade de ação. Enquanto isso, muitos acreditam que essa lei venha a gerar um conflito que desembocará no Supremo Tribunal Federal, a quem caberá a decisão acerca de qual fundamento deverá prevalecer.
    De forma geral, esse paradoxo constitucional impõe um dilema baseado no conflito entre a defesa da moralidade na política [favoráveis à lei] e a presunção da inocência [contrários à lei]. Do ponto de vista da Sociologia do Direito, trata-se de uma oposição entre a Sociedade, com seus valores particulares e transitórios, e o indivíduo, o portador abstrato de direitos universais e permanentes. Do mesmo modo, é um conflito entre a Sociologia Política e a Filosofia Moral [liberal]. E, talvez, entre Durkheim e Benjamin Constant? E você, caro leitor, preferiria defender o fundamento que tem como base última os valores sociais, que poderiam promover maior coesão e legitimidade das instituições políticas ou os princípios universais dos direitos individuais, que garantiriam as liberdades civis e os direitos políticos acima de qualquer coisa? Ou, será que haveria uma solução habermasiana para a questão: harmonizar ambos os princípios?

Senado Brasileiro: dos Atos Secretos ao Voto "Aberto"

SENADO ACCOUNTABLE? Ainda sob o rescaldo dos escândalos que se abateram e ainda se abatem sobre o Senado brasileiro, sua Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou ontem a PEC 38/04 [Link: projeto no Senado], um projeto de Emenda Constitucional que já tramitava há cerca de seis anos e que pode trazer um pouco mais de transparência a algumas decisões importantes tomadas pelos congressistas. Para entrar em vigor, a PEC ainda tem de ser aprovada em duas sessões nos plenários do Senado e da Câmara dos Deputados. Trata-se da possibilidade de por fim ao voto secreto para os seguintes casos:
  • Cassação de mandato parlamentar
  • Derrubada a veto presidencial
  • Escolha de governador de território
  • Escolha do presidente e dos diretores do Banco Central
  • Escolha de diretores de agências reguladores
  • Escolha de chefes de missão diplomática em caráter permanente
  • Escolha dos membros do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério Público
Outra medida aprovada pa CCJ do Senado tem como objetivo "incentivar" maior fidelidade dos parlamentares para com seus respectivos partidos. O projeto apresentado pelo Senador Aloísio Mercadante [PT-SP], em 2005, impõe duas regras: (1) exigência de três anos de filiação ao partido para o lançamento de qualquer candidatura e (2) perda imediata do mandato para os representantes que trocarem de partido. Neste último caso, o projeto ratifica a "interpretação" que a Justiça Eleitoral já havia dado aos casos de troca partidária. O relator, senador Demóstenes Torres [DEM-GO] acrescentou algumas ressalvas: as medidas não seriam aplicadas aos casos que envolvessem fusões partidárias, criação de novos partidos e desvios do partido em relação ao programa original. 
    A expectativa é que se reduza a constante troca de legendas protagonizadas tanto por deputados como senadores, governadores, prefeitos e vereadores. De fato, o assim chamado "troca-troca" partidário é um fenômeno bastante acentuado no Brasil, como já discutido por vários pesquisadores [uma análise importante sobre o tema é  a de Carlos Melo, num livro intitulado "Retirando as Cadeiras do Lugar", lançado em 2004 pela editora da UFMG]. Tais regras podem induzir os parlamentares a permanecer por mais tempo nas legendas partidárias, pelo menos por três anos. 
    Na verdade, embora isso ainda não tenha sido devidamente mensurado por pesquisas mais recentes, é possível cogitar que a intervenção do Poder Judiciário nesse processo, por meio da "interpretação" acerca do pertencimento do mandato - se pertence ao partido ou ao candidato - tenha reduzido o montante das migrações de deputados de um partido para outro. Não obstante, algo que deve ser observado e conferido é o tipo de impacto que tais medidas produzirão na dinâmica do que já se convencionou chamar de "presidencialismo de coalizão".
    Como se sabe, no Brasil, os governos são formados por negociações que resultam em coalizões partidárias, e estas dão sustentação política ao Poder Executivo em todo o processo legislativo. Porém, muitas vezes, as coalizões pura e simplesmente não garantem o número de cadeiras suficiente para a aprovação de projetos que demandem certas maiorias. Sem poder incluir novos partidos na coalizão, o governo investe num curso de ação que redunda no aumento das bancadas dos partidos aliados. Um recurso estratégico utilizado para "engordar" os partidos da base de apoio é a "cooptação" ou atração de parlamentares de outros partidos, dando-lhes uma série de "incentivos" para que troquem de partido. 
    Portanto, a governabilidade obtida por meio do "presidencialismo de coalizão" dependeu muitas vezes não apenas da própria coalizão, mas também da migração parlamentar. De certo modo, é possível dizer que se, por um lado, a migração parlamentar pode ser vista como um problema ético, moral, o que seja, por outro, ela pode ser entendida como um mecanismo que auxiliava o Presidente na obtenção da governabilidade. Sua redução deverá levar à busca de novas estratégias, certamente com custos que podem ser mais altos ou não em relação à migração parlamentar. Por isso, vale a pena observar atentamente como essa alteração na "regra do jogo" alterará as estratégias dos atores envolvidos. Que estratégias serão essas? Que resultados produzirão? Quais os custos que essas novas estratégias certamente acarretarão ao sistema político? A única certeza antecipada é que haverá novos custos e problemas. Infelizmente, a política sempre lida com dilemas e paradoxos sem uma "solução" plenamente satisfatória para todos e, por isso, pode ser bem ilustrada pelo dilema do "cobertor curto": cobre-se o pé mas se descobre a cabeça!


TIPOS DE MANDATO EM CONFLITO. Sem dúvida, se aprovado em definitivo pelas duas casas legislativas, o fim do voto secreto para a cassação de mandatos representativos, contemplará uma das maiores demandas atuais da população. Aos olhos do demos brasileiro, a "abertura" do voto em casos de impedimento de políticos tornará mais factível o exercício da pressão dos grupos sociais sobre seus representantes, tanto antes como depois da decisão. Essa medida corresponde à formação de uma estrutura pública de pressão social sobre as instituições políticas, rumo a maior responsabilidade. Só pode ser responsável aquele que age sob a luz da vigilância pública. Transparência, portanto, é pré-requisito para a accountability
    Contudo, antes de qualquer conclusão precipitada, é importante considerarmos alguns dilemas envolvidos nos fundamentos dessa questão. Não podemos perder de vista o fato de que o controle favorecido pela transparência não se exerce apenas ex-post, ou seja, como prestação de contas depois de realizado o ato; o controle, nesse caso, também pode ser exercido ex-ante, sob a forma de pressão que induz ao ato. O parlamentar, assim, não estaria exposto apenas à censura, à punição ou, então, à recompensa dos cidadãos depois de ter tomado certa decisão; ele também estaria exposto às pressões sociais antes da decisão a ser tomada, de modo que, antecipando a punição futura, comportar-se-ia de acordo com os desejos populares ou dos grupos com maior poder de pressão. 
    Em grande parte, essa é a essência de um governo populista que, diferentemente do demagógico, não conduz as massas, mas se deixa conduzir por elas. Evidentemente não me refiro aqui aos governos populistas do estilo latino-americano que, em realidade, são governos demagógicos que dissimulam sua habilidade de conduzir "as massas" por meio da simulação populista. Se atentarmos para as definições clássicas [por exemplo: de Francisco Weffort e de Octávio Ianni], perceberemos que o populismo nada mais é do que uma demagogia dissimulada. Refiro-me aqui a idéia de governo populista apresentada por William Riker, em seu livro clássico Liberalism against Populism, no qual chama de populista todo o governo que se baseia na vontade majoritária sem limites e, por extensão, no controle ex-ante do representante pelo representado. Contrariamente, o governo liberal, um governo pluralista por excelência, contemplaria até as últimas consequências as vontades das minorias e os direitos individuais, limitando o controle sobre o representante ao momento ex-post.
    É claro que Riker acaba sendo levado a propor que o controle/accountability deva se restringir apenas às eleições, deixando esvaziado o espaço para a interferência da sociedade civil no período entre-eleições. No entanto, ele toca em uma questão crucial dos desenhos constitucionais e que envolve um dos dilemas da política: até que ponto e sobre quais temas deve prevalecer o segredo na política? Ou seja, qual o ponto limítrofe a partir do qual a transparência, requisito da responsabilidade, deixa de ser algo positivo e se transforma em  algo prejudicial ao interesse público?
    Consideremos o caso do Poder Judiciário: os ministros do Supremo Tribunal Federal proferem e fundamentam publicamente seus votos, mas têm resguardada sua independência e sua suposta proteção contra as pressões sociais por intermédio do exercício de uma função não submetida ao controle do voto popular - têm garantidas a inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos. Em princípio, sua independência em relação às idiossincrasias das urnas compensariam sua exposição pública quando da proclamação de suas decisões. Ou seja, pode-se exercer um controle ex-post, mas não ex-ante, dos magistrados, sendo que o controle ex-post ocorre pelas mudanças na legislação, a cargo do Poder Legislativo. Devido a isso, não há limites para a transparência nas atividades do Poder Judiciário, ou pelo menos não deveria haver.
    Já no caso dos dois outros poderes - Executivo e Legislativo - a coisa é diferente e é aí que, como dizem os mineiros, "a porca torce o rabo". Os parlamentares estão expostos a ambas as formas de controle, mas, em alguns casos, reserva-se a eles o direito de serem liberados do controle ex-ante, facultando-lhes o uso do voto secreto. Presume-se que, assim, seriam garantidas duas liberdades legislativas: (1) livre das pressões, cada parlamentar poderia votar seguindo a "voz racional" de sua consciência e (2) em sendo secreto o voto, seria impossível a identificação das posições de cada parlamentar e, com isso, evitar-se-ia que a elegibilidade do cargo o faça agir de modo contrário à sua consciência. Em realidade, o voto secreto anula as duas formas de controle - ex-ante e ex-post - para, em princípio, garantir uma decisão refletida, ponderada e, portanto, justa. Em consequência, há limites para a transparência das decisões legislativas, ou pelo menos deveria haver.
    Entretanto, é claro que a mão que acaricia é a mesma que desfere um soco. Desde Sócrates sabemos que as instituições, mesmo virtuosas, degeneram-se. O segredo na política pode ser bem usado, conforme descrito acima, ou pode ser usado para propósitos escusos. Livre do controle dos representados, os representantes podem incorrer em abusos dos mais variados. Podem, inclusive, usar o voto secreto para cometer injustiças, fazer barganhas e agir divorciados de suas consciências; pressupondo-se que todos, de fato as tenham ou que seja possível definir precisamente o que seria isso: uma consciência do interesse público!!?? Então, se o voto é secreto, o que pode controlar, evitar ou punir os abusos? Mas, se o voto não é secreto, o que pode garantir que as decisões não seja populistas? Esse é um dilema que mostra as complexidades daquilo que já se chamou de "engenharia política".
    Mas, há ainda outro dilema envolvido nessa questão. Há pontos defensáveis seja contrária seja favoravelmente à votação secreta; isso porque há um conflito entre dois princípios de outorga e exercício do mandato. Aqueles que defendem que cada parlamentar deve ser livre para votar de acordo com sua "consciência", e que tal liberdade somente seria garantida por meio do voto secreto, pressupõem o princípio do mandato representativo. De outra parte, aqueles que defendem que, pelo contrário, o parlamentar deve ser controlado pela "consciência" de seus representados e que, para tanto, devem expressar seus votos publicamente, adotam, mesmo que não saibam disso, o princípio do mandato imperativo.
    O mandato imperativo, matéria ainda discutida pelo Direito Constitucional e pela Teoria Política, é uma prática representativa que tomou volume teórico e operacional na França e na Inglaterra dos Séculos XVII e XVIII, sendo um resquício do modelo absolutista e do mecanismo das assembléias dos "estados gerais", em que se garantia a representação dos estamentos sociais. Assim, o mandato imperativo tinha como fundamento o vínculo integral e orgânico entre o representante e o representado. O mandato era concebido como uma espécie de procuração que o representado dava ao representante para que este agisse estritamente de acordo com suas instruções. Tratava-se de um princípio de representação explícita de grupos sociais/econômicos que "enviavam" seus "homens" ao parlamento para a defesa apenas e tão somente das questões que tocavam nos seus interesses diretos. Não cabia ao representante "interpretar" a vontade popular ou de seus representantes, mas sim os interesses do seu estamento ou de seu distrito. Mas, como saber se o representante movia a boca conforme desejava a mão do ventríloquo? Simples: votações "abertas" no parlamento.
   Contrariamente, o mandato representativo é associado à idéia liberal de representação individual e tomou forma ao longo do Século XIX e das primeiras do Século XX, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra - embora sua origem institucional se encontre na Revolução Francesa, que procurava extirpar todas as estruturas do antigo regime, chegando a incluir a proibição do mandato imperativo na Constituição de 1791 [a ilustração ao lado é dos estados gerais que antecederam a revolução, na França]. A idéia geral era que, diante da complexidade cada vez maior da política, inclusive pela extensão do sufrágio até sua quase universalidade, seria impossível que o parlamentar seguisse à risca os interesses de um indivíduo ou de um grupo específico. Caberia ao parlamentar a função de servir de "consciência moral" da sociedade e atuar como seu "intérprete", por um lado, e como seu "filtro crítico", por outro. Essa idéia já pode ser "rastreada" nas "pegadas" da caminhada teórica de Montesquieu ["O Espírito das Leis" e encontrada de maneira bastante sistematizada na concepção de democracia de Émile Durkheim ["Lições de Sociologia"], um autor cuja teoria política não foi ainda totalmente esmiuçada pelos cientistas políticos.
     Talvez, o defensor mais ardoroso desse princípio tenha sido o conservador inglês Edmund Burke [foto ao lado], que o chamava de "mandato parlamentar. Em seu "Discurso aos Eleitores de Bristol", pronunciado em 1774, Burke chegou a afirmar o seguinte: "Teu representante te deve não somente seus esforços, mas também seu juízo, e se ele se submeter totalmente a tua opinião, cometerá traição ao invés de te servir." Para Burke, os legisladores não representam apenas uma cidade, uma região, uma classe ou atividade econômica, mas toda a nação. Enquanto os eleitores buscam as particularidades, os representantes devem buscar a generalidade. Portanto, se Benjamin Constant pode ser identificado como o grande defensor da "liberade dos modernos" ou, como denominado por Isaiah Berlim, a "liberdade negativa", Burke pode ser associado à representação parlamentar ou o mandato representativo - mesmo não sendo ele exatamente um liberal, embora adepto do contratualismo.
    Portanto, o mandato representativo corresponde à visão liberal clássica, que colocava o parlamento e seus ocupantes numa paisagem composta por dois edifícios constitucionais bastante precisos: a divisão dos poderes, num extremo, e, no outro, os grupos intermediários. Além de ser um dos poderes do Estado, o parlamento abrigava sob seu telhado um grupo de pessoas especiais, capazes de "funcionar" como um grupo intermediário - ou instituição intermediária - entre a vontade popular e as políticas do Estado. Sendo "tradutores" dessa vontade e "intérpretes" da moral, os legisladores teriam como incumbência principal o exercício livre de suas "consciências", com a finalidade de "depurar", por assim dizer, as demandas sociais, extraindo-lhes as paixões e tudo aquilo que poderia atentar contra os interesses últimos da sociedade - sua própria coesão. Mas, para "filtrar" os excessos e realizar a justiça em nome e em prol da sociedade, suas "consciências" deveriam ser "protegidas" das pressões interesseiras e conjunturais, de modo que o melhor representante fosse aquele que representasse "a" sociedade por intermédio de sua "consciência livre". Mas, como protegê-la, de modo que a própria vontade popular pudesse ser "verdadeiramente" contemplada? Simples também: votação secreta em  casos especiais.
    Como podemos perceber, o mandato representativo, de certo modo, apoia-se sobre a "cabeça" de Rousseau, e o faz com tanta força que acaba por esmagá-la. Assim como no caso daquele grande teórico da democracia, a idéia de uma instância depurativa, capaz de extrair a verdadeira vontade geral também moveu a pena dos teóricos do mandato representativo, mas, já a partir da segunda linha, riscou-se a assembléia popular e a democracia direta para por em seu lugar a representação e a "consciência" do representante. Como exatamente procederia o parlamentar para mediar os interesses sociais díspares e processa-los em sua consciência, de forma a interpretar o que seria a vontade geral ou o bem comum, nunca é claramente explicado. Nesse caso, aliás, agiram novamente como Rousseau, que deixou tão vago quanto pôde como afinal de contas a vontade geral poderia ser algo diferente da vontade individual e também da vontade da maioria - por mais que seus intérpretes tentem atar esse nó solto da teoria rousseauniana, o laço não se fecha.
    Seja como for, de maneira geral, considera-se que o mandato representativo é aquele que prevalece e que deve prevalecer nas democracias contemporâneas. Todo o arcabouço constitucional liberal se juntou ao pluralismo das sociedades complexas, dando ensejo a uma dinâmica política na qual deputados e senadores não representam clivagens sociais precisas, nem grupos de interesse exclusivos, mas sim o indivíduo no sentido abstrato, quando se trata de resguardar seus direitos fundamentais, e também as pessoas, os indivíduos concretos, quando se trata de defender direitos sociais e políticos. Afinal, numa sociedade plural, o próprio indivíduo/pessoa teria sua identidade formada por camadas de influências variadas e superpostas, de modo que cada um de nós pertenceríamos a uma variedade enorme de grupos sociais primários e secundários. Para cada decisão política em questão, haveria um composição de grupos, flexíveis e intercambiáveis, de forma que seria mais fácil que os representantes procurassem representar tais indivíduos, de maneira mais ou menos aproximada, do que atuar como portadores de uma procuração rígida e exclusiva de algum classe ou algum grupo social.
     Porém, desde a emergência das modernas organizações partidárias, já ao final do Século XIX, e de sua consolidação, especialmente na Europa, dos nos 1940-1960, o mandato imperativo parece ter se esgueirado por entre as brechas do sistema político, voltando a ocupar um espaço que, em termos práticos, talvez nunca fôra totalmente perdido. Cada vez mais se exige que deputados e senadores votem de acordo com a orientação de seus partidos, deixando-se muito poucos casos para a "liberdade de consciência" de cada um dos representantes. Sendo o mandato uma propriedade do partido, caberia ao parlamentar agir como um obstinado defensor de seu programa e de suas posições. Vários analistas de política comparada, inclusive, cunharam um termo para esse "tipo ideal" de comportamento parlamentar orientado pela idéia do mandato imperativo/partidário: disciplina partidária. Emprestaram de Lenin [foto acima] essa noção, para o qual o mais importante na organização partidária era justamente a rígida disciplina numa estrutura quase-militar, com o comando cabendo às lideranças ou à vanguarda revolucionária. Curiosamente, no modelo democrático liberal recente, retoma-se a defesa normativa da disciplina partidária como um indicador não apenas da força do partido mas também de governabilidade. No caso do Brasil, por exemplo, a grande querela acadêmica da área de estudos legislativos é saber se os deputados são ou não disciplinados e quais as explicações para tal comportamento.
    Portanto, o grande xis da questão é saber se o mandato representativo compõe uma real dicotomia com o mandato imperativo ou se, na verdade, a retórica do primeiro nada mais faz do que ocultar que, ao fim e ao cabo, todo mandato é imperativo. No contexto atual, o imperativo se vincula ao partido, "dono" constitucional do mandato - inclusive, mais uma vez, no Brasil, segundo a interpretação do Poder Judiciário. Então, o partido representa os eleitores e os deputados e senadores representam o partido. Mas, se for assim, o partido opera sob a lógica do mandato representativo, enquanto os deputados e senadores agem sob os ditames do mandato imperativo. Então, quando se proíbe o voto secreto dos congressistas, pressupõe-se que, em caso contrário, eles agiriam contra a indicação do partido? Ou seja, deixariam de cumprir o mandato imperativo/partidário para cumprir um mandato imperativo/grupal/classista ou um mandato representativo/individual
    Se os partidos têm controle sobre o parlamentar, então, não é necessário acabar com o voto secreto, pois basta saber a posição de cada partido sobre a questão; contrariamente, se os partidos não têm controle sobre os parlamentares, então, acabe-se com o voto secreto e exponha os deputados e senadores ao controle ex-ante, forçando-os à lógica do mandato imperativo/individual. Ou, então, defenda-se que há questões que devem ser submetidas às "consciências críticas" dos parlamentares e não ao controle interesseiro, passional e conjuntural, seja dos partidos, seja dos eleitores agrupados em clivagens. Mas, é claro, admita-se que os parlamentares, agindo secretamente, podem cometer abusos e desvios morais, administrativos e programáticos. Mas, o mais importante é que se saiba que o voto secreto está para o mandato representativo ou o mandato imperativo/partidário, assim como o voto aberto está para o mandato imperativo/grupal/classista. Sem que isso esteja claro, ficarão claros os novos custos que serão impostos a todo o sistema político e à sociedade decorrentes das novas regras.
    Pensemos num exemplo: se coubesse aos parlamentares a decisão acerca da adoção da pena de morte, seria diferente o resultado da votação se o voto fosse secreto e não aberto? Antes de responder a isso, pense noutra questão: se a decisão sobre a adoção da pena de morte fosse tomada por meio de um plebiscito, qual seria o resultado? Várias pesquisas já mostraram que a maioria da população é favorável à pena de morte, o que nos leva à seguinte questão: por que essa "demanda" ainda não foi processada pelos congressistas e transformada num plebiscito? Porque ao desconsiderar uma questão, os legisladores, na prática, já estão a legislar, atuando como a "consciência crítica" da sociedade. Mas, se a pressão social for muito intensa, porém, não tão intensa a ponto de provocar um plebiscito, obviamente, o parlamento tomará para si a responsabilidade de deliberar sobre o tema. Assim, ao invés de uma "legislação dissimulada pela omissão", teriam de produzir uma legislação efetiva por consideração do problema. Voltemos agora à primeira questão: se coubesse aos parlamentares a decisão acerca da adoção da pena de morte, seria diferente o resultado da votação se o voto fosse secreto e não aberto?
    Evidentemente, no caso concreto da PEC 38/04, tudo indica que seria melhor um controle ex-ante e ex-post das decisões parlamentares, pois a sociedade suporta cada vez menos a absolvição de parlamentares facilitada pelo segredo da votação de seus pares. Mas, devemos atentar para o princípio envolvido na questão concreta e refletir sobre o que seria mais indicado escolher quando se trata de pensar o problema sob a ótica dos dois dilemas: segredo versus transparência e mandato imperativo versus mandato representativo.
    E, para finalizar, ainda com relação ao caso concreto, podemos nos perguntar em que medida essa emenda constitucional nada mais seria do que uma "migalha" de "moralidade" atirada ao demos para distrair e aplacar momentaneamente a "sanha" da classe média ainda indignada com os atos secretos e o número elevado de funcionários do Senado. Sem uma solução real para tais problemas estruturais, o Senado "sinaliza" que caminha para maior transparência e que busca, ele próprio, a "moralização" da política - entenda-se por moralização um sinônimo de honestidade misturada com punição dos culpados, conforme o senso comum. Mas, o que garante que a resistência à cassação de colegas não leve os deputados e senadores a deslocarem seus esforços da decisão final, votada abertamente em plenário, aos pontos de veto anteriores, desde a abertura da investigação interna? O fato é que poucos parlamentares vão a julgamento em plenário e, talvez, depois de aprovado o projeto, esse número se reduza um "cadinho", para parafrasear os mineiros novamente.