Parâmetros para a Análise das Eleições de 2010

VOX POPULI, VOX DEI. Geralmente utilizada para ressaltar que o regime democrático consiste numa forma de governo na qual a vontade popular deve ser obedecida à risca, a tão erroneamente consagrada “a voz do povo é a voz de Deus”, de fato, vem sendo a tônica dominante nas campanhas eleitorais nos últimos 40 ou 50 anos nos países que adotam essa forma de governo. Apesar de não conter o dispositivo da soberania direta, preconizado pelo primeiro e grande teórico defensor da democracia, Jean Jacques Rousseau, levado ao extremo, esse mote implica na aceitação de que a vontade majoritária deve ser ouvida, cortejada, promovida quase sem limites. Os representantes deixariam de ser líderes políticos e passariam a ser liderados pelos representados, transfigurados em “marionetes” que abrem a boca pelas mãos e falam com a voz do “povo”. Ou, então, num jogo estratégico retórico, os representantes falam aquilo que o “povo”, em sua maioria, quer ouvir, mas não pretendem ou não têm condições de realizar, de fato, o que irresponsável ou falsamente prometeram. No primeiro caso, haveria o perigo da tirania da maioria; no segundo, o perigo da degeneração do governo democrático em demagogia. Obviamente, também é possível uma forma de governo degenerada mista: a tirania demagógica.

    Em realidade, ao que consta, a expressão vox populi, vox dei traduz a preocupação de personalidades políticas e religiosas com o advento histórico da democracia. O problema vislumbrado era a disseminação da crença inabalável na ideia de que, no mundo temporal, a soberania passaria a residir na vontade inquestionável de um novo deus: o “povo”. Então, a alusão à vontade popular como sendo a vontade de Deus, tinha conotação negativa, pois explicitava que a democracia poderia induzir à falsa e “perigosa” concepção de que a vontade popular é sempre certa e infalível, tal qual a vontade de Deus: o “povo” sabe de tudo, está por toda a parte e, portanto, pode tudo.
    Mas havia ainda outro problema: como o “povo” é uma grande abstração e decisões consensuais praticamente não existem, na prática, esse novo deus não seria nada mais do que a vontade majoritária. Sem maiores cuidados e limites, indivíduos e grupos minoritários poderiam ser tiranizados em nome da democracia, em nome da vontade do demos, um deus que poderia se tornar tão violento e vingativo como aquele do velho testamento. Pensadores liberais, como Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville, foram alguns dentre aqueles que chamaram a atenção para tais aspectos. Para eles, a vontade majoritária teria de encontrar seus limites nos direitos individuais fundamentais, por intermédio de algum mecanismo que pudesse equilibrar a vontade majoritária com certas garantias às minorias.
    Seja como for, do ponto de vista histórico, a democracia representativa acabou se tornando o regime político predominante no mundo contemporâneo. A democracia passou de uma forma de governo considerada problemática e degenerada, desde a Grécia clássica até o Século XIX, à única forma de governo legítima e aceitável. A força de sua legitimidade é tão grande que, na atualidade, a teoria das formas de governo acabou se reduzindo a apenas dois tipos: ou democracia ou, então, alguma forma de ditadura. Em realidade, o grande debate que mobiliza teóricos, políticos e cidadãos em geral se da em torno dos modelos alternativos de democracia e não acerca de algum modelo alternativo à democracia.
    A despeito das variações nos desenhos constitucionais, o fato é que as democracias contemporâneas partilham de algumas características básicas. Todas elas combinam o sistema de divisão dos poderes com a soberania popular, que se manifesta por meio da vontade majoritária, mas que encontra limites em direitos individuais fundamentais inscritos nas Constituições. Essa vontade majoritária se manifesta por meio de processos de decisões coletivas, de escolhas sociais entre certas alternativas publicamente apresentadas. Assim, no templo da democracia, a liturgia por meio da qual essa deidade, o “povo”, expressa seus desejos, seus interesses e suas preferências constitui o processo eleitoral. Por meio dele, a vontade majoritária se pronuncia acerca das políticas que devem ser seguidas e indica quem serão seus representantes nessa tarefa.

PARADOXO DEMOCRÁTICO. A vontade majoritária expressa o debate agendado pelas lideranças políticas ou, pelo contrário, as lideranças políticas, na verdade, são lideradas pela vontade majoritária que, assim, impõe os termos do debate? Essa tem sido a grande preocupação de alguns teóricos. Cortejar a vontade popular, dizer o que o “povo” quer ouvir traria sérias conseqüências para a própria efetividade dos governos representativos. Promessas que não serão cumpridas são feitas, gerando frustrações com a própria democracia; propostas de políticas irresponsáveis que, quando implementadas, criam dificuldades administrativas e orçamentárias, levam ao enfraquecimento da capacidade de execução de outras políticas públicas e, por extensão, a novas insatisfações com o governo e com o regime. Além disso, dizer simplesmente o que o “povo” quer ouvir pode levar a políticas conservadoras, pois novos caminhos ainda não visualizados pela maioria sequer entram na pauta do debate público. Isso sem contar que se todas as “lideranças” políticas investirem nessa estratégia demagógica, praticamente não haverá diferenças substantivas entre os postulantes aos cargos representativos. Se todos dizem as mesmas coisas, a própria escolha fica comprometida, porque não há uma escolha verdadeira em questão.
  Aqueles que se preocupam com esse fenômeno encontram evidências do descontentamento com a democracia nos crescentes índices de abstenção eleitoral nos países de democracias mais antigas - conforme pode ser visto no gráfico ao lado. Além disso, a identificação partidária nos países europeus vem se reduzindo desde a década de 1960, e o descontentamento com os políticos, com as instituições representativas e até mesmo com a democracia é cada vez mais significativo, como mostram diversas pesquisas de política comparada que se baseiam em séries históricas de enquetes. Os efeitos sucessivos desse fenômeno seriam o seguinte: o desencanto com os políticos se transforma em desencanto com a política e pode se transformar em desencanto com a democracia. Por isso, segundo os críticos, a utilização das estratégias de marketing na competição eleitoral, com o mapeamento da vontade majoritária ou do consumidor de políticas para a produção de um discurso sintonizado com aquilo que o “povo” quer ouvir, ou seja, o "endeusamento" do "povo", é o caminho mais seguro para a simplificação dos problemas sociais, para a manipulação dos desejos e interesses, para o conservadorismo moral e sócio-econômico e, finalmente, para a frustração com a política e a democracia.
    Porém, se a democracia representativa é uma forma de governo na qual prevalece a posição majoritária, como exigir que políticos e partidos que nutrem a ambição genuína e legítima de ocupar os cargos representativos façam outra coisa que não agir em consonância com a vontade da maioria? Afinal, não é possível chegar ao governo sem contar com os votos da maioria dos eleitores; não é possível governar de maneira satisfatória sem contar com o apoio da maioria dos eleitos. Defender novos valores, sintonizados com alguma minoria, não conduzem aos postos de governo, pois não resulta em votação suficiente para obter a maioria necessária para ser eleito. E mesmo para que já está no governo, a tarefa de diferir da vontade majoritária é maior do que as tarefas de Hércules, pois tentar implementar políticas inovadoras, sintonizadas com as preferências minoritárias, não resulta em apoio majoritário nas casas legislativas, o que significa que tal comportamento será inócuo, ingênuo ou até temerário, com sérias chances de conduzir a situações de impasse e crise institucional.
   Talvez não exista uma alternativa a esse paradoxo. Talvez, de fato, nas democracias prevaleça forçosamente a máxima vox populi vox dei. Trata-se de um deus numérico, quantitativo, intrínseco à vontade majoritária. Por um lado, as decisões democráticas ocorrem sempre sob a regra majoritária; por outro, mapear essa vontade e agir em sintonia com ela provoca, no limite, o desencanto com a própria democracia. Seria então a frustração e o desencanto o preço que teríamos a pagar pela liberdade e os direitos fundamentais propostos pelo liberalismo e somente garantidos pelos paradoxais regimes democráticos?
    Alguns poderão dizer que uma saída possível a esse paradoxo seria o investimento numa ação de verdadeira liderança política, ou seja, em discursos inovadores que procurem mudar as opiniões, formando uma “nova” vontade majoritária. Embora seja teoricamente possível, há dois problemas nessa estratégia. Em primeiro lugar, quem fizer isso enfrentará a inércia da vontade majoritária já constituída, que será cortejada por outros políticos mais pragmáticos. Em segundo lugar, procurar atuar na formação de uma “nova” vontade majoritária significa que ela ainda é minoritária e, portanto, dificilmente será transformada em vontade majoritária no curto prazo. Ou, então, isso significa que não se trata propriamente de uma “nova” vontade majoritária, mas sim de outra vontade majoritária que estava em segundo plano ou de uma vontade majoritária antiga que estava “adormecida”. De uma forma ou de outra, ainda se trata de cortejar a vontade majoritária. Inclusive, no caso de ressuscitar uma vontade majoritária antiga, isso pode consistir na abertura da "caixa de pandora", deixando que se aflorem preconceitos e conservadorismos ainda mais radicais.

AS ELEIÇÕES BRASILEIRAS. Agora, pensemos nas eleições brasileiras deste ano. Será que essas considerações poderiam nos ajudar a fazer uma análise mais abrangente desse processo? Acredito que sim. Mas, deixo isso por conta do leitor, inclusive porque penso que, ao invés de apresentar fatos, números e qualquer tipo de futurologia acerca do novo governo, que podem ser facilmente encontradas em jornais, ou ainda interpretações unilaterais como as que já pululam pela internet, o mais interessante é dar um instrumental analítico ou uma heurística que possa levar o leitor ao exercício de interpretação por conta própria. Verá, nobre leitor, que várias peças do jogo eleitoral se encaixarão e a política - em geral, e a brasileira, em específico - passará a ser vista como uma atividade humana cheia de dilemas e paradoxos de difícil resolução.
    Então, procure analisar quem conduziu a vontade majoritária estabelecida e quem tentou trazer à tona outra vontade majoritária, baseada em outros temas, com o objetivo de conquistar o poder. Quem tentou construir uma “nova” vontade majoritária e teve de lidar com a inércia da vontade majoritária predominante? Avalie as conseqüências práticas de cada estratégia, seus resultados e, inclusive, os contra-factuais; ou seja: e se Marina tivesse vencido, teria condições de implementar uma “nova” política? Se não tivesse tais condições, o que poderia ocorrer? Ela se resignaria à vontade majoritária e à "velha política"? Ela tentaria se impor diante do Congresso, mantendo sua proposta original, mesmo sendo de um governo minoritário? Para fazer curvar o Congresso diante de sua vontade, poderia "apelar" para o apoio das ruas? Quem e quando vimos a mesma coisa em nossa história política recente? Quais foram as consequências disso? E se, por outro lado, a estratégia de impor uma decisão eleitoral baseada em valores morais conservadores, como foi o caso de Serra, realmente prevalecesse, que consequências políticas teríamos a partir da formação de uma vontade majoritária antiga reavivada? E a prevalência da atual vontade majoritária, como foi o que ocorreu com a vitória de Dilma, que consequências tem para a política brasileira e as instituições democráticas do país? A maioria ampla que deve lhe apoiar no Congresso facilita a governabilidade, mas o que provoca no caso das vontades minoritárias?
    Visto desse modo, o processo eleitoral pode levar ao desencantamento. Mas, ao mesmo tempo, esse desencantamento com a política e as eleições deixará de ser frustração para ser o que deve ser:  a renúncia a ver a política como uma atividade encantada, mágica, na qual tudo é possível a partir de um simples ato de vontade.

Ficha Limpa: Legislação para Eleitor ver?

CAIU A FICHA... LIMPA. O projeto denominado Ficha Limpa, aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados, foi sancionado, sem vetos, pelo Presidente Lula nesta última sexta-feira, dia 05, e publicado no Diário Oficial da União de hoje. Esse projeto torna inelegível por oito anos qualquer possível postulante a cargo representativo que tenha sido condenado – crimes eleitorais que levem à prisão, improbidade administrativa, abuso de poder político e crimes dolosos com penas superiores a dois anos – por mais de um juiz, ou seja, por decisão colegiada. Entretanto, fica garantido ao condenado o que vem sendo chamado de “efeito suspensivo”, o que significa que ele pode solicitar, com prioridade e rapidez garantidas, que sua condenação seja reavaliada por outro colegiado da Justiça, com a finalidade de obter a suspensão da decisão anterior.
    O Ficha Limpa é um projeto de iniciativa popular, coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral [MCCE], uma organização composta por 44 entidades de grande representatividade [membros nacionais]. Foi protocolado no Poder Legislativo em Setembro de 2009 e conseguiu a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores. Veja abaixo uma das peças de propaganda do MCCE.


    
    De lá pra cá, até a sanção presidencial, houve pelo menos duas alterações substantivas na versão original, realizadas pelo parlamento. Inicialmente, o projeto propunha que fossem considerados inelegíveis todos aqueles que tivessem sido condenados em primeira instância, o que, obviamente, dava maior amplitude à aplicação da medida. Porém, esse dispositivo foi alterado e a punição passou a ser aplicada apenas aos condenados por colegiados da Justiça, reduzindo-se a incidência dos casos às condenações de segunda instância ou de foros privilegiados. 
    A segunda redução da incidência da lei ocorreu com a alteração que o senador Francisco Dornelles [foto ao lado], do PP do Rio de Janeiro, promoveu com sua emenda, digamos, "gramatical" numa frase, modificando seu tempo verbal. Assim, onde se lia que a punição aplicar-se-ia aos que “tenham sido” condenados, agora se lê que a punição será imposta aos que “forem” condenados. Portanto, a lei terá validade para os casos futuros, fazendo do passado nada mais do que “águas passadas...”, o que significa garantir a elegibilidade até mesmo de Maluf um dos pouquíssimos que seriam atingidos pela nova regra.
    Seja como for, agora finalmente convertido na Lei Complementar 135, o Projeto Ficha Limpa provocou enorme satisfação em diversas pessoas, preocupadas com a “moralidade” política, especialmente porque, segundo elas: (1) tratou-se de um projeto de iniciativa popular, um instrumento constitucional de democracia direta ou “semi-direta” - dependendo de como se teorize a questão -, que possibilita o fortalecimento da sociedade civil; (2) apesar das alterações no projeto original, o mais importante é que, durante alguns meses, fez-se ampla discussão acerca do tema, colaborando para o maior envolvimento da população com os processos políticos do país; e (3) trata-se de mais um tijolo numa estrutura legal que vem sendo desenhada lentamente e que resultará num edifício político mais transparente e sujeito ao controle público. Aliás, a lei de combate à corrupção eleitoral e o fim do voto secreto no parlamento seriam os outros dois tijolos já assentados sobre os quais essa nova lei é cimentada.
    Porém, em que medida as alterações promovidas pelos parlamentares não teriam tornado a medida inócua, fazendo crer que se avançou bastante no processo de "moralização" política quando todo o debate e a letra da lei não passariam de "sofismas" para "eleitor ver"? E ainda, esse projeto de iniciativa popular, de fato, representaria o fortalecimento desse mecanismo de democracia participativa instituído pela Constituição de 1988? Depois de mais de 20 anos de vigência da Constituição cidadã, segundo a célebre apresentação da carta magna à sociedade pelo constituinte Ulisses Guimarães, qual o real grau de utilização desse instrumento pela Sociedade Civil brasileira? O parlamento dispõe de recursos e instâncias adequados para o acolhimento e a rápida tramitação de projetos dessa natureza? E como harmonizar o paradoxo constitucional imposto por essa lei complementar, que prevê alguma forma de punição antes da condenação final, "flexibilizando" o pressuposto da inocência até que se prove o contrário e que se julgue, em definitivo, o acusado?


QUEM TERÁ A FICHA SUJA COM A LEI FICHA LIMPA? Todo o estardalhaço envolvido no debate iniciado pelo Projeto Ficha Limpa e toda a comemoração com sua aprovação pelo parlamento e, agora, com a sanção presidencial, não podem esconder um fato rodriguiano, ou seja, um óbvio ululante: pouquíssimos casos poderão ser enquadrados na nova lei. Com a alteração na versão original, estabelecendo que a inelegibilidade somente será aplicada aos condenados por colegiado da Justiça, reduziu-se significativamente o escopo da medida.
   Num levantamento realizado pela Folha de São Paulo, foi possível identificar que, dentre os 73 congressistas de São Paulo da atual legislatura [70 deputados federais e 3 senadores], 37 estavam em um destas três situações: ou já foram condenados em primeira instância, ou foram indiciados ou já são réus. Mas, como não foram condenados por um grupo de juízes [segunda instância ou foro privilegiado], nenhum deles estaria sujeito  à aplicação da nova lei. Na verdade, quando consideramos ainda os 37 líderes partidários do estado, apenas um seria enquadrado na segunda versão da lei - Paulo Maluf. Porém, com a emenda "gramatical" de Francisco Dornelles, coincidentemente colega de partido e amigo de Maluf, nem mesmo o líder do PP seria impedido de se candidatar, pois, na versão final, a aplicação da lei não pode incidir sobre o que já foi julgado antes de sua sanção pelo Presidente da República.
    Além disso, outro grande problema é que aqueles que já ocupam cargos eletivos têm direito ao foro privilegiado, instância na qual a morosidade do processo é considerável. Assim, enquanto não sai nenhuma condenação dessa instância, todos os acusados continuam gozando dos direitos de elegibilidade. Portanto, dos poucos casos que virão a se enquadrar na nova lei, a maior parte deles provavelmente compreenderá candidaturas novas. Isso porque os candidatos novos, ou seja, aqueles que não ocupam nenhum cargo eletivo no momento da candidatura, não dispõem de foro privilegiado, e o julgamento de seus casos pode ocorrer com um pouco mais de rapidez - mas, claro, a rapidez do sistema judicial brasileiro. Então, se nem Maluf se enquadra na lei, quem seria pego por ela?


PROJETOS DE [BAIXA] INICIATIVA POPULAR. Apesar da Constituição brasileira instituir o mecanismo da apresentação de projeto de lei de iniciativa popular, regulamentado pela Lei 9709/98, que também regulamenta referendos e plebiscitos, até o momento, apenas 4 projetos desse tipo foram aprovados. Há duas razões para isso: em primeiro lugar, o número de projetos de iniciativa popular apresentados é baixíssimo, em decorrência das dificuldades de serem cumpridas todas as exigências formais para que tais projetos sejam protocolados na Secretaria-Geral da Mesa da Câmara; em segundo lugar, porque essa Secretaria-Geral já se pronunciou incapacitada para receber e protocolar devidamente os projetos de iniciativa popular.
   As dificuldades para a apresentação desse tipo de projeto residem nas exigências constitucionais estabelecidas para tanto: (1) deve ser apresentado na Câmara um abaixo-assinado que subsidie a proposta, (2) o projeto deve ser subscrito por pelo menos 1% do eleitorado nacional, (3) as assinaturas devem ser distribuídas por pelo menos cinco estados, (4) para cada estado não deve haver menos do que três décimos por centro dos eleitores totais de cada um deles e (4) junto com as assinaturas devem constar os números dos respectivos títulos eleitorais. Assim, a logística para a coleta das assinaturas é bastante complexa, sem contar que quase nunca os eleitores, geralmente abordados na rua, carregam consigo seus títulos eleitorais, nem lembram de seu número. Coletar apenas a assinatura não é suficiente; supor que o eleitor volte no dia seguinte para preencher o número do título também é inconcebível, pelo menos para a maioria dos casos. Desse modo, os projetos de iniciativa popular acabam sendo projetos de iniciativa de algumas grandes organizações sociais.
    Mas, mesmo que se consiga cumprir todas as exigências, há um segundo grande obstáculo a ser vencido, e o retrospecto não tem sido nada favorável à iniciativa popular. A Secretaria-Geral da Mesa da Câmara, responsável por receber e protocolar os projetos, tem a incumbência de verificar toda a documentação e atestar a autenticidade das assinaturas e dos respectivos números dos títulos eleitorais. Diante disso, a Secretaria já se declarou incapacitada para a tarefa: não dispõe de recursos, nem de qualquer rotina tecnológica para conferir cada uma das milhares de assinaturas, bem como os números dos títulos de eleitor. Surgiu, assim, um paradoxo institucional-burocrático: para iniciar sua tramitação, o projeto de iniciativa popular precisa do protocolo da Mesa da Câmara, mas esta não autentica as assinaturas e, portanto, trava o processo legislativo já em seu nascedouro. A solução encontrada até agora foi a seguinte. Algum deputado ou grupo de deputados que simpatizarem com a causa "patrocinam" o projeto, ou seja, assinam o projeto para que seja iniciada sua tramitação sem maiores entraves. Dos quatro projetos aprovados até agora, três deles tiveram esse percurso. Então, os projetos de iniciativa popular, em sua grande maioria, conseguem tramitação somente quando deixam de ser projetos de iniciativa popular e se transformam em projetos de iniciativa parlamentar.
    Há ainda um terceiro obstáculo nessa via crucis desses projetos. Quando finalmente entram no processo legislativo, tramitam com uma vagareza desalentadora. O primeiro projeto de iniciativa popular aprovado, que estabeleceu o Fundo Nacional de Habitação, foi protocolado em Janeiro de 1992, e somente foi sancionado em 2005. A própria lei de combate à corrupção eleitoral [Lei 9840/99], que até já contribuiu para a cassação de vários políticos brasileiros, e que está associada ao Projeto Ficha Limpa, percorreu um longo caminho até ser sancionada. Embora sua tramitação tenha ocorrido em apenas 42 dias, foi extremamente demorado e difícil o processo de coleta de assinaturas e de seu acolhimento pela Mesa da Câmara. O projeto teve início na CNBB, em 1997, e encontrou sérias dificuldades para recolher todas as assinaturas necessárias de acordo com os critérios estabelecidos. Depois de envolver algumas centrais sindicais, a OAB e vários veículos de comunicação na campanha, finalmente foi atingido o montante necessário de assinaturas e o projeto foi entregue à Secretaria-Geral em 1999. Mas, então, constatou-se a impossibilidade de validação das assinaturas e a alternativa foi o "patrocínio" parlamentar: 11 deputados subscreveram o projeto em nome de seus partidos e outros 5o deputados assinaram o documento em apoio individual.
    Mais recentemente, outra possibilidade de projetos de iniciativa popular foi aberta, com a criação da Comissão de Legislação Participativa [CLP], em 2001. Os projetos, nesse caso, devem ser apresentados por entidades civis e as exigências são mais simples. Inclusive, esse mecanismo tem se mostrado um pouco mais ativo do que os PL de iniciativa popular com assinaturas individuais. Até o momento, foram apresentadas cerca de 300 propostas à CLP. 
    De qualquer modo, é extremamente baixa a utilização desses mecanismos de democracia direta ou semi-direta, incluindo-se os referendos e plebiscitos. Estes dois últimos, obviamente, dependem da iniciativa dos Poderes Constitucionais, mas os projetos de iniciativa popular, como o próprio nome diz, dependem da iniciativa do demos. Será que apenas as dificuldades operacionais impedem seu uso mais sistemático por parte da Sociedade Civil? Haveria alguma componente cultural nos meandros desse fenômeno que ajudariam a explicá-lo? Afinal, a participação não é reduzida apenas nao que se refere à utilização desses mecanismos constitucionais, mas igualmente em outras formas de manifestação mais informais, como os protestos públicos e as reivindicações.


PARADOXO CONSTITUCIONAL? O fundamento jurídico do Projeto Ficha Limpa foi buscado por seus proponentes no Artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição Federal. Lá se estabelece que os critérios de elegibilidade deverão ser fixados por legislação complementar e que tais critérios devem levar em consideração a trajetória do candidato. Com base nisso, o projeto, agora transformado em lei, propõe que seja impedido de se candidar pessoas que venham a ser condenados por órgão colegiado. Mas, da outra margem do rio vêm declarações de protesto contra o fundamento da nova lei. Na mesma Constituição Federal há garantias individuais que têm como pressuposto a inocência de todos até que o julgamento seja concluído e o réu definitivamente condenado. 
     Os defensores do projeto, em réplica, alegam que a punição não tem caráter criminal, mas preventivo, ou seja, ninguém será preso, apenas se previne que entre em cargos eletivos possíveis corruptos. Os críticos, em tréplica, argumentam que, de um modo ou de outro, trata-se de punição antecipada e que impedir alguém de se candidatar é tolher sua liberdade de ação. Enquanto isso, muitos acreditam que essa lei venha a gerar um conflito que desembocará no Supremo Tribunal Federal, a quem caberá a decisão acerca de qual fundamento deverá prevalecer.
    De forma geral, esse paradoxo constitucional impõe um dilema baseado no conflito entre a defesa da moralidade na política [favoráveis à lei] e a presunção da inocência [contrários à lei]. Do ponto de vista da Sociologia do Direito, trata-se de uma oposição entre a Sociedade, com seus valores particulares e transitórios, e o indivíduo, o portador abstrato de direitos universais e permanentes. Do mesmo modo, é um conflito entre a Sociologia Política e a Filosofia Moral [liberal]. E, talvez, entre Durkheim e Benjamin Constant? E você, caro leitor, preferiria defender o fundamento que tem como base última os valores sociais, que poderiam promover maior coesão e legitimidade das instituições políticas ou os princípios universais dos direitos individuais, que garantiriam as liberdades civis e os direitos políticos acima de qualquer coisa? Ou, será que haveria uma solução habermasiana para a questão: harmonizar ambos os princípios?

Senado Brasileiro: dos Atos Secretos ao Voto "Aberto"

SENADO ACCOUNTABLE? Ainda sob o rescaldo dos escândalos que se abateram e ainda se abatem sobre o Senado brasileiro, sua Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania aprovou ontem a PEC 38/04 [Link: projeto no Senado], um projeto de Emenda Constitucional que já tramitava há cerca de seis anos e que pode trazer um pouco mais de transparência a algumas decisões importantes tomadas pelos congressistas. Para entrar em vigor, a PEC ainda tem de ser aprovada em duas sessões nos plenários do Senado e da Câmara dos Deputados. Trata-se da possibilidade de por fim ao voto secreto para os seguintes casos:
  • Cassação de mandato parlamentar
  • Derrubada a veto presidencial
  • Escolha de governador de território
  • Escolha do presidente e dos diretores do Banco Central
  • Escolha de diretores de agências reguladores
  • Escolha de chefes de missão diplomática em caráter permanente
  • Escolha dos membros do Conselho Nacional de Justiça e do Ministério Público
Outra medida aprovada pa CCJ do Senado tem como objetivo "incentivar" maior fidelidade dos parlamentares para com seus respectivos partidos. O projeto apresentado pelo Senador Aloísio Mercadante [PT-SP], em 2005, impõe duas regras: (1) exigência de três anos de filiação ao partido para o lançamento de qualquer candidatura e (2) perda imediata do mandato para os representantes que trocarem de partido. Neste último caso, o projeto ratifica a "interpretação" que a Justiça Eleitoral já havia dado aos casos de troca partidária. O relator, senador Demóstenes Torres [DEM-GO] acrescentou algumas ressalvas: as medidas não seriam aplicadas aos casos que envolvessem fusões partidárias, criação de novos partidos e desvios do partido em relação ao programa original. 
    A expectativa é que se reduza a constante troca de legendas protagonizadas tanto por deputados como senadores, governadores, prefeitos e vereadores. De fato, o assim chamado "troca-troca" partidário é um fenômeno bastante acentuado no Brasil, como já discutido por vários pesquisadores [uma análise importante sobre o tema é  a de Carlos Melo, num livro intitulado "Retirando as Cadeiras do Lugar", lançado em 2004 pela editora da UFMG]. Tais regras podem induzir os parlamentares a permanecer por mais tempo nas legendas partidárias, pelo menos por três anos. 
    Na verdade, embora isso ainda não tenha sido devidamente mensurado por pesquisas mais recentes, é possível cogitar que a intervenção do Poder Judiciário nesse processo, por meio da "interpretação" acerca do pertencimento do mandato - se pertence ao partido ou ao candidato - tenha reduzido o montante das migrações de deputados de um partido para outro. Não obstante, algo que deve ser observado e conferido é o tipo de impacto que tais medidas produzirão na dinâmica do que já se convencionou chamar de "presidencialismo de coalizão".
    Como se sabe, no Brasil, os governos são formados por negociações que resultam em coalizões partidárias, e estas dão sustentação política ao Poder Executivo em todo o processo legislativo. Porém, muitas vezes, as coalizões pura e simplesmente não garantem o número de cadeiras suficiente para a aprovação de projetos que demandem certas maiorias. Sem poder incluir novos partidos na coalizão, o governo investe num curso de ação que redunda no aumento das bancadas dos partidos aliados. Um recurso estratégico utilizado para "engordar" os partidos da base de apoio é a "cooptação" ou atração de parlamentares de outros partidos, dando-lhes uma série de "incentivos" para que troquem de partido. 
    Portanto, a governabilidade obtida por meio do "presidencialismo de coalizão" dependeu muitas vezes não apenas da própria coalizão, mas também da migração parlamentar. De certo modo, é possível dizer que se, por um lado, a migração parlamentar pode ser vista como um problema ético, moral, o que seja, por outro, ela pode ser entendida como um mecanismo que auxiliava o Presidente na obtenção da governabilidade. Sua redução deverá levar à busca de novas estratégias, certamente com custos que podem ser mais altos ou não em relação à migração parlamentar. Por isso, vale a pena observar atentamente como essa alteração na "regra do jogo" alterará as estratégias dos atores envolvidos. Que estratégias serão essas? Que resultados produzirão? Quais os custos que essas novas estratégias certamente acarretarão ao sistema político? A única certeza antecipada é que haverá novos custos e problemas. Infelizmente, a política sempre lida com dilemas e paradoxos sem uma "solução" plenamente satisfatória para todos e, por isso, pode ser bem ilustrada pelo dilema do "cobertor curto": cobre-se o pé mas se descobre a cabeça!


TIPOS DE MANDATO EM CONFLITO. Sem dúvida, se aprovado em definitivo pelas duas casas legislativas, o fim do voto secreto para a cassação de mandatos representativos, contemplará uma das maiores demandas atuais da população. Aos olhos do demos brasileiro, a "abertura" do voto em casos de impedimento de políticos tornará mais factível o exercício da pressão dos grupos sociais sobre seus representantes, tanto antes como depois da decisão. Essa medida corresponde à formação de uma estrutura pública de pressão social sobre as instituições políticas, rumo a maior responsabilidade. Só pode ser responsável aquele que age sob a luz da vigilância pública. Transparência, portanto, é pré-requisito para a accountability
    Contudo, antes de qualquer conclusão precipitada, é importante considerarmos alguns dilemas envolvidos nos fundamentos dessa questão. Não podemos perder de vista o fato de que o controle favorecido pela transparência não se exerce apenas ex-post, ou seja, como prestação de contas depois de realizado o ato; o controle, nesse caso, também pode ser exercido ex-ante, sob a forma de pressão que induz ao ato. O parlamentar, assim, não estaria exposto apenas à censura, à punição ou, então, à recompensa dos cidadãos depois de ter tomado certa decisão; ele também estaria exposto às pressões sociais antes da decisão a ser tomada, de modo que, antecipando a punição futura, comportar-se-ia de acordo com os desejos populares ou dos grupos com maior poder de pressão. 
    Em grande parte, essa é a essência de um governo populista que, diferentemente do demagógico, não conduz as massas, mas se deixa conduzir por elas. Evidentemente não me refiro aqui aos governos populistas do estilo latino-americano que, em realidade, são governos demagógicos que dissimulam sua habilidade de conduzir "as massas" por meio da simulação populista. Se atentarmos para as definições clássicas [por exemplo: de Francisco Weffort e de Octávio Ianni], perceberemos que o populismo nada mais é do que uma demagogia dissimulada. Refiro-me aqui a idéia de governo populista apresentada por William Riker, em seu livro clássico Liberalism against Populism, no qual chama de populista todo o governo que se baseia na vontade majoritária sem limites e, por extensão, no controle ex-ante do representante pelo representado. Contrariamente, o governo liberal, um governo pluralista por excelência, contemplaria até as últimas consequências as vontades das minorias e os direitos individuais, limitando o controle sobre o representante ao momento ex-post.
    É claro que Riker acaba sendo levado a propor que o controle/accountability deva se restringir apenas às eleições, deixando esvaziado o espaço para a interferência da sociedade civil no período entre-eleições. No entanto, ele toca em uma questão crucial dos desenhos constitucionais e que envolve um dos dilemas da política: até que ponto e sobre quais temas deve prevalecer o segredo na política? Ou seja, qual o ponto limítrofe a partir do qual a transparência, requisito da responsabilidade, deixa de ser algo positivo e se transforma em  algo prejudicial ao interesse público?
    Consideremos o caso do Poder Judiciário: os ministros do Supremo Tribunal Federal proferem e fundamentam publicamente seus votos, mas têm resguardada sua independência e sua suposta proteção contra as pressões sociais por intermédio do exercício de uma função não submetida ao controle do voto popular - têm garantidas a inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos. Em princípio, sua independência em relação às idiossincrasias das urnas compensariam sua exposição pública quando da proclamação de suas decisões. Ou seja, pode-se exercer um controle ex-post, mas não ex-ante, dos magistrados, sendo que o controle ex-post ocorre pelas mudanças na legislação, a cargo do Poder Legislativo. Devido a isso, não há limites para a transparência nas atividades do Poder Judiciário, ou pelo menos não deveria haver.
    Já no caso dos dois outros poderes - Executivo e Legislativo - a coisa é diferente e é aí que, como dizem os mineiros, "a porca torce o rabo". Os parlamentares estão expostos a ambas as formas de controle, mas, em alguns casos, reserva-se a eles o direito de serem liberados do controle ex-ante, facultando-lhes o uso do voto secreto. Presume-se que, assim, seriam garantidas duas liberdades legislativas: (1) livre das pressões, cada parlamentar poderia votar seguindo a "voz racional" de sua consciência e (2) em sendo secreto o voto, seria impossível a identificação das posições de cada parlamentar e, com isso, evitar-se-ia que a elegibilidade do cargo o faça agir de modo contrário à sua consciência. Em realidade, o voto secreto anula as duas formas de controle - ex-ante e ex-post - para, em princípio, garantir uma decisão refletida, ponderada e, portanto, justa. Em consequência, há limites para a transparência das decisões legislativas, ou pelo menos deveria haver.
    Entretanto, é claro que a mão que acaricia é a mesma que desfere um soco. Desde Sócrates sabemos que as instituições, mesmo virtuosas, degeneram-se. O segredo na política pode ser bem usado, conforme descrito acima, ou pode ser usado para propósitos escusos. Livre do controle dos representados, os representantes podem incorrer em abusos dos mais variados. Podem, inclusive, usar o voto secreto para cometer injustiças, fazer barganhas e agir divorciados de suas consciências; pressupondo-se que todos, de fato as tenham ou que seja possível definir precisamente o que seria isso: uma consciência do interesse público!!?? Então, se o voto é secreto, o que pode controlar, evitar ou punir os abusos? Mas, se o voto não é secreto, o que pode garantir que as decisões não seja populistas? Esse é um dilema que mostra as complexidades daquilo que já se chamou de "engenharia política".
    Mas, há ainda outro dilema envolvido nessa questão. Há pontos defensáveis seja contrária seja favoravelmente à votação secreta; isso porque há um conflito entre dois princípios de outorga e exercício do mandato. Aqueles que defendem que cada parlamentar deve ser livre para votar de acordo com sua "consciência", e que tal liberdade somente seria garantida por meio do voto secreto, pressupõem o princípio do mandato representativo. De outra parte, aqueles que defendem que, pelo contrário, o parlamentar deve ser controlado pela "consciência" de seus representados e que, para tanto, devem expressar seus votos publicamente, adotam, mesmo que não saibam disso, o princípio do mandato imperativo.
    O mandato imperativo, matéria ainda discutida pelo Direito Constitucional e pela Teoria Política, é uma prática representativa que tomou volume teórico e operacional na França e na Inglaterra dos Séculos XVII e XVIII, sendo um resquício do modelo absolutista e do mecanismo das assembléias dos "estados gerais", em que se garantia a representação dos estamentos sociais. Assim, o mandato imperativo tinha como fundamento o vínculo integral e orgânico entre o representante e o representado. O mandato era concebido como uma espécie de procuração que o representado dava ao representante para que este agisse estritamente de acordo com suas instruções. Tratava-se de um princípio de representação explícita de grupos sociais/econômicos que "enviavam" seus "homens" ao parlamento para a defesa apenas e tão somente das questões que tocavam nos seus interesses diretos. Não cabia ao representante "interpretar" a vontade popular ou de seus representantes, mas sim os interesses do seu estamento ou de seu distrito. Mas, como saber se o representante movia a boca conforme desejava a mão do ventríloquo? Simples: votações "abertas" no parlamento.
   Contrariamente, o mandato representativo é associado à idéia liberal de representação individual e tomou forma ao longo do Século XIX e das primeiras do Século XX, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra - embora sua origem institucional se encontre na Revolução Francesa, que procurava extirpar todas as estruturas do antigo regime, chegando a incluir a proibição do mandato imperativo na Constituição de 1791 [a ilustração ao lado é dos estados gerais que antecederam a revolução, na França]. A idéia geral era que, diante da complexidade cada vez maior da política, inclusive pela extensão do sufrágio até sua quase universalidade, seria impossível que o parlamentar seguisse à risca os interesses de um indivíduo ou de um grupo específico. Caberia ao parlamentar a função de servir de "consciência moral" da sociedade e atuar como seu "intérprete", por um lado, e como seu "filtro crítico", por outro. Essa idéia já pode ser "rastreada" nas "pegadas" da caminhada teórica de Montesquieu ["O Espírito das Leis" e encontrada de maneira bastante sistematizada na concepção de democracia de Émile Durkheim ["Lições de Sociologia"], um autor cuja teoria política não foi ainda totalmente esmiuçada pelos cientistas políticos.
     Talvez, o defensor mais ardoroso desse princípio tenha sido o conservador inglês Edmund Burke [foto ao lado], que o chamava de "mandato parlamentar. Em seu "Discurso aos Eleitores de Bristol", pronunciado em 1774, Burke chegou a afirmar o seguinte: "Teu representante te deve não somente seus esforços, mas também seu juízo, e se ele se submeter totalmente a tua opinião, cometerá traição ao invés de te servir." Para Burke, os legisladores não representam apenas uma cidade, uma região, uma classe ou atividade econômica, mas toda a nação. Enquanto os eleitores buscam as particularidades, os representantes devem buscar a generalidade. Portanto, se Benjamin Constant pode ser identificado como o grande defensor da "liberade dos modernos" ou, como denominado por Isaiah Berlim, a "liberdade negativa", Burke pode ser associado à representação parlamentar ou o mandato representativo - mesmo não sendo ele exatamente um liberal, embora adepto do contratualismo.
    Portanto, o mandato representativo corresponde à visão liberal clássica, que colocava o parlamento e seus ocupantes numa paisagem composta por dois edifícios constitucionais bastante precisos: a divisão dos poderes, num extremo, e, no outro, os grupos intermediários. Além de ser um dos poderes do Estado, o parlamento abrigava sob seu telhado um grupo de pessoas especiais, capazes de "funcionar" como um grupo intermediário - ou instituição intermediária - entre a vontade popular e as políticas do Estado. Sendo "tradutores" dessa vontade e "intérpretes" da moral, os legisladores teriam como incumbência principal o exercício livre de suas "consciências", com a finalidade de "depurar", por assim dizer, as demandas sociais, extraindo-lhes as paixões e tudo aquilo que poderia atentar contra os interesses últimos da sociedade - sua própria coesão. Mas, para "filtrar" os excessos e realizar a justiça em nome e em prol da sociedade, suas "consciências" deveriam ser "protegidas" das pressões interesseiras e conjunturais, de modo que o melhor representante fosse aquele que representasse "a" sociedade por intermédio de sua "consciência livre". Mas, como protegê-la, de modo que a própria vontade popular pudesse ser "verdadeiramente" contemplada? Simples também: votação secreta em  casos especiais.
    Como podemos perceber, o mandato representativo, de certo modo, apoia-se sobre a "cabeça" de Rousseau, e o faz com tanta força que acaba por esmagá-la. Assim como no caso daquele grande teórico da democracia, a idéia de uma instância depurativa, capaz de extrair a verdadeira vontade geral também moveu a pena dos teóricos do mandato representativo, mas, já a partir da segunda linha, riscou-se a assembléia popular e a democracia direta para por em seu lugar a representação e a "consciência" do representante. Como exatamente procederia o parlamentar para mediar os interesses sociais díspares e processa-los em sua consciência, de forma a interpretar o que seria a vontade geral ou o bem comum, nunca é claramente explicado. Nesse caso, aliás, agiram novamente como Rousseau, que deixou tão vago quanto pôde como afinal de contas a vontade geral poderia ser algo diferente da vontade individual e também da vontade da maioria - por mais que seus intérpretes tentem atar esse nó solto da teoria rousseauniana, o laço não se fecha.
    Seja como for, de maneira geral, considera-se que o mandato representativo é aquele que prevalece e que deve prevalecer nas democracias contemporâneas. Todo o arcabouço constitucional liberal se juntou ao pluralismo das sociedades complexas, dando ensejo a uma dinâmica política na qual deputados e senadores não representam clivagens sociais precisas, nem grupos de interesse exclusivos, mas sim o indivíduo no sentido abstrato, quando se trata de resguardar seus direitos fundamentais, e também as pessoas, os indivíduos concretos, quando se trata de defender direitos sociais e políticos. Afinal, numa sociedade plural, o próprio indivíduo/pessoa teria sua identidade formada por camadas de influências variadas e superpostas, de modo que cada um de nós pertenceríamos a uma variedade enorme de grupos sociais primários e secundários. Para cada decisão política em questão, haveria um composição de grupos, flexíveis e intercambiáveis, de forma que seria mais fácil que os representantes procurassem representar tais indivíduos, de maneira mais ou menos aproximada, do que atuar como portadores de uma procuração rígida e exclusiva de algum classe ou algum grupo social.
     Porém, desde a emergência das modernas organizações partidárias, já ao final do Século XIX, e de sua consolidação, especialmente na Europa, dos nos 1940-1960, o mandato imperativo parece ter se esgueirado por entre as brechas do sistema político, voltando a ocupar um espaço que, em termos práticos, talvez nunca fôra totalmente perdido. Cada vez mais se exige que deputados e senadores votem de acordo com a orientação de seus partidos, deixando-se muito poucos casos para a "liberdade de consciência" de cada um dos representantes. Sendo o mandato uma propriedade do partido, caberia ao parlamentar agir como um obstinado defensor de seu programa e de suas posições. Vários analistas de política comparada, inclusive, cunharam um termo para esse "tipo ideal" de comportamento parlamentar orientado pela idéia do mandato imperativo/partidário: disciplina partidária. Emprestaram de Lenin [foto acima] essa noção, para o qual o mais importante na organização partidária era justamente a rígida disciplina numa estrutura quase-militar, com o comando cabendo às lideranças ou à vanguarda revolucionária. Curiosamente, no modelo democrático liberal recente, retoma-se a defesa normativa da disciplina partidária como um indicador não apenas da força do partido mas também de governabilidade. No caso do Brasil, por exemplo, a grande querela acadêmica da área de estudos legislativos é saber se os deputados são ou não disciplinados e quais as explicações para tal comportamento.
    Portanto, o grande xis da questão é saber se o mandato representativo compõe uma real dicotomia com o mandato imperativo ou se, na verdade, a retórica do primeiro nada mais faz do que ocultar que, ao fim e ao cabo, todo mandato é imperativo. No contexto atual, o imperativo se vincula ao partido, "dono" constitucional do mandato - inclusive, mais uma vez, no Brasil, segundo a interpretação do Poder Judiciário. Então, o partido representa os eleitores e os deputados e senadores representam o partido. Mas, se for assim, o partido opera sob a lógica do mandato representativo, enquanto os deputados e senadores agem sob os ditames do mandato imperativo. Então, quando se proíbe o voto secreto dos congressistas, pressupõe-se que, em caso contrário, eles agiriam contra a indicação do partido? Ou seja, deixariam de cumprir o mandato imperativo/partidário para cumprir um mandato imperativo/grupal/classista ou um mandato representativo/individual
    Se os partidos têm controle sobre o parlamentar, então, não é necessário acabar com o voto secreto, pois basta saber a posição de cada partido sobre a questão; contrariamente, se os partidos não têm controle sobre os parlamentares, então, acabe-se com o voto secreto e exponha os deputados e senadores ao controle ex-ante, forçando-os à lógica do mandato imperativo/individual. Ou, então, defenda-se que há questões que devem ser submetidas às "consciências críticas" dos parlamentares e não ao controle interesseiro, passional e conjuntural, seja dos partidos, seja dos eleitores agrupados em clivagens. Mas, é claro, admita-se que os parlamentares, agindo secretamente, podem cometer abusos e desvios morais, administrativos e programáticos. Mas, o mais importante é que se saiba que o voto secreto está para o mandato representativo ou o mandato imperativo/partidário, assim como o voto aberto está para o mandato imperativo/grupal/classista. Sem que isso esteja claro, ficarão claros os novos custos que serão impostos a todo o sistema político e à sociedade decorrentes das novas regras.
    Pensemos num exemplo: se coubesse aos parlamentares a decisão acerca da adoção da pena de morte, seria diferente o resultado da votação se o voto fosse secreto e não aberto? Antes de responder a isso, pense noutra questão: se a decisão sobre a adoção da pena de morte fosse tomada por meio de um plebiscito, qual seria o resultado? Várias pesquisas já mostraram que a maioria da população é favorável à pena de morte, o que nos leva à seguinte questão: por que essa "demanda" ainda não foi processada pelos congressistas e transformada num plebiscito? Porque ao desconsiderar uma questão, os legisladores, na prática, já estão a legislar, atuando como a "consciência crítica" da sociedade. Mas, se a pressão social for muito intensa, porém, não tão intensa a ponto de provocar um plebiscito, obviamente, o parlamento tomará para si a responsabilidade de deliberar sobre o tema. Assim, ao invés de uma "legislação dissimulada pela omissão", teriam de produzir uma legislação efetiva por consideração do problema. Voltemos agora à primeira questão: se coubesse aos parlamentares a decisão acerca da adoção da pena de morte, seria diferente o resultado da votação se o voto fosse secreto e não aberto?
    Evidentemente, no caso concreto da PEC 38/04, tudo indica que seria melhor um controle ex-ante e ex-post das decisões parlamentares, pois a sociedade suporta cada vez menos a absolvição de parlamentares facilitada pelo segredo da votação de seus pares. Mas, devemos atentar para o princípio envolvido na questão concreta e refletir sobre o que seria mais indicado escolher quando se trata de pensar o problema sob a ótica dos dois dilemas: segredo versus transparência e mandato imperativo versus mandato representativo.
    E, para finalizar, ainda com relação ao caso concreto, podemos nos perguntar em que medida essa emenda constitucional nada mais seria do que uma "migalha" de "moralidade" atirada ao demos para distrair e aplacar momentaneamente a "sanha" da classe média ainda indignada com os atos secretos e o número elevado de funcionários do Senado. Sem uma solução real para tais problemas estruturais, o Senado "sinaliza" que caminha para maior transparência e que busca, ele próprio, a "moralização" da política - entenda-se por moralização um sinônimo de honestidade misturada com punição dos culpados, conforme o senso comum. Mas, o que garante que a resistência à cassação de colegas não leve os deputados e senadores a deslocarem seus esforços da decisão final, votada abertamente em plenário, aos pontos de veto anteriores, desde a abertura da investigação interna? O fato é que poucos parlamentares vão a julgamento em plenário e, talvez, depois de aprovado o projeto, esse número se reduza um "cadinho", para parafrasear os mineiros novamente.

As Eleições no Reino Unido: Rachaduras no Modelo Westminster?

UMA ELEIÇÃO SEM VENCEDORES. No dia 6 de maio, quinta-feira, o Reino Unido foi às urnas na eleição mais acirrada dos últimos tempos. Na agenda política, os temas mais polêmicos e urgentes que se apresentaram foram a crise econômica, que ainda faz vítimas na Europa – e, com os ingleses, não é diferente, especialmente no que se refere ao seu déficit público –, a controvérsia em relação aos imigrantes ilegais, os problemas sociais crescentes – como o aumento da pobreza e da desigualdade na distribuição da renda –, as dificuldades com o ensino em geral, principalmente o elementar, e a insatisfação popular com a participação inglesa na assim chamada "guerra contra o terrorismo", produto de uma parceria inusitada entre Tony Blair e G. W. Bush.
    Contabilizados os votos, confirmou-se a expectativa de redução do número de cadeiras no parlamento ocupadas pelo Partido Trabalhista e de obtenção da maioria dos assentos pelo Partido Conservador. Não obstante, os conservadores ficaram aquém do número mínimo necessário para ocupar a maioria absoluta dos 650 lugares na Câmara dos Comuns e foi surpreendentemente abaixo do espero o desempenho eleitoral do Partido Liberal-Democrata, o Lib-Dem. Conforme os dados do gráfico abaixo [Fonte: BBC/Elections], os conservadores obtiveram cerca de 30% dos votos, acrescentando 97 cadeiras a mais sobre a totalidade de que dispunha anteriormente. As quase 100 cadeiras conquistadas vieram dos trabalhistas e dos liberais-democratas, que perderam 91 e 5 cadeiras, respectivamente. As mudanças de voto entre trabalhistas e conservadores, conhecidas como swing vote, foram favoráveis ao Partido Conservador, com 5% de volatilidade eleitoral.

    Porém, apesar das cadeiras perdidas, o Lib-Dem saiu fortalecido de uma eleição que, para os padrões do modelo político britânico, não teve vencedor. Por quê? Porque embora tenham obtido a maioria dos votos e das cadeiras no parlamento, os conservadores não conquistaram as 326 cadeiras necessárias para formar o gabinete e governar sozinhos. Os trabalhistas, por sua vez, apesar de terem perdido a maioria que lhe garantia o direito de manter o Primeiro Ministro no cargo e governar isoladamente – como o fizeram nos últimos 13 anos –, ficando em segundo lugar na disputa, conquistaram um número de cadeiras suficiente para acalentar a possibilidade   de investir num plano B para manterem o governo no Reino Unido por mais um período. Esse plano B seria formar um governo de coalizão com o terceiro colocado, o Lib-Dem. No entanto, os conservadores tinham o mesmo plano B, e foi justamente essa conjuntura que levou o Lib-Dem, com suas 57 cadeiras, a se tornar a “dama” mais cortejada do sistema  partidário do Reino Unido ao longo do final de semana que se seguiu à eleição.
    O temor dos britânicos, apegados à sua tradição política de governos ocupados por um único partido, assim como do mercado financeiro, que clama por um governo forte e estável, seja em Westminster, seja no número 10 da Downing Street, seriam as conseqüências de um parlamento fragmentado, no qual nenhum partido dispõe da maioria absoluta das cadeiras, levando à formação ou de um governo minoritário – o pior cenário – ou de um governo de coalizão – cenário “menos pior”, mas ainda assim incerto, uma vez que os ingleses não dominam, por assim dizer, a “tecnologia” de condução de alianças político-partidárias e de coalizões governamentais, como outros países da Europa e até mesmo como o Brasil, cujo formato vem sendo denominado "presidencialismo de coalizão". 
    Portanto, os britânicos vivem agora um momento delicado de sua história política recente, mas também bastante interessante. Depois de mais de uma década de governo trabalhista, de ter sido considerado um dos exemplos de boa administração pública e de gestão macroeconômica da Europa, o Reino Unido enfrenta, de um lado, a pior crise econômica desde o Pós-Segunda Guerra, e, de outro, uma situação político-constitucional para a qual é totalmente inexperiente, qual seja: um parlamentarismo de coalizão em razão da fragmentação partidária na Casa dos Comuns, ou, como eles curiosamente costumam chamar, um hung parliament.
      Mas, como o sistema britânico, que adota a representação majoritária radical, conhecida como o modelo first-past-the-post, não conteve o crescimento de um terceiro partido, o Lib-Dem? Como seu plurality vote system não conseguiu a manutenção do bipartidarismo? Esse crescimento persistente dos Liberais, já há alguns anos, dinamizado pela fusão destes com os Democratas, resultando no atual Lib-Dem, seria evidência da necessidade de adoção de alguma forma de representação proporcional naquele país? Em que medida as próprias inovações nas campanhas eleitorais do Reino Unido, desde a ascensão de Tony Blair, levando à popularização da figura do Primeiro Ministro, culminando com o primeiro debate televisivo dos postulantes ao cargo nesta última eleição, não seriam sinais de que seu sistema parlamentarista funciona, cada vez mais, com uma lógica presidencialista? Em suma, em que medida todas essas características não seriam indicadores de rachaduras no modelo Westminster, assentado rigidamente sobre a representação majoritária e o governo parlamentarista?

A "AMERICANIZAÇÃO" DA CAMPANHA. Quem acompanhou esta última campanha eleitoral no Reino Unido pode perceber claramente duas características centrais. A primeira delas é que se consolidou o padrão norte-americano de propaganda política, incluindo-se as técnicas de marketing eleitoral e de relações públicas, neste último caso, no estilo inaugurado pelo famoso e, para alguns, famigerado Edward Bernays - o sobrinho de Sigmund Freud que se empenhou em aplicar as teorias psicanalíticas do tio à propaganda comercial e política. A segunda característica marcante foi reforçada pela primeira e consiste na imposição de uma dinâmica presidencialista num sistema que, contrariamente, é parlamentarista.
    Quanto à primeira característica, é fato que, desde as disputas eleitorais dos anos 1980, cada vez mais os britânicos "importaram" as técnicas de comunicação e de marketing eleitoral, inclusive o Partido Trabalhista que, com a campanha que levou Tony Blair à Downing Street-10, em 1997, abraçou de vez esse modo de "conquista" e "persuasão" dos eleitores. Veja abaixo uma peça de propaganda do Labour Party na qual é seguida à risca a receita já consagrada de "ataque" ao partido que está no governo, no caso, o Conservative Party. Essa técnica pressupõe três passos ou movimentos. Em primeiro lugar, deve-se caracterizar o mundo atual como altamente problemático, precário e quase sem esperança. Tal caracterização deve ser dramática, tanto nas imagens como nas informações e na trilha sonora.
                  Propaganda trabalhista na campanha de 1997
    
    O segundo passo da técnica de persuasão consiste em reforçar a situação problemática do contexto em que vive o eleitor, mas introduzir a esperança que parecia perdida. É um mote bastante comum na maioria dos filmes policiais ou dos famosos filmes de bang-bang. Os "bandidos" dominam um ambiente desolador até que, em certo momento, aparece o good-guy que trará de volta a ordem e a felicidade de todos. A peça abaixo segue esse plot e o herói é Tony Blair. Sua postura, sua fala, sua entonação devem mostrar segurança, convicção e liderança. Bem treinado, com a edição correta, parece que ele conseguiu a performance necessária para o caso.
  Propaganda dos trabalhistas apresenta Blair na campanha de 1997

    
    Para reforçar a imagem do candidato como the right man for the job, é preciso avaliar qual a "demanda" do eleitorado. Os eleitores estão cansados dos políticos tradicionais? Eles querem alguém jovem para revigorar a política ou eles querem alguém mais maduro que lhes transmita segurança? Naquele momento, era preciso alguém que mostrasse energia para mudar o cenário social e econômico e que, ao mesmo tempo, tivesse um perfil diferente  daquele que transparecia dos políticos tradicionais, especialmente dos conservadores. Então, a peça abaixo consiste na apresentação desse produto inovador ao eleitorado britânico.
        Propaganda trabalhista apresenta Blair "paz e amor", 1997

    
    O terceiro passo, bem executado pelos trabalhistas, consiste em se concentrar agora na "restauração do paraíso perdido". Convencidos de que Blair poderia trazer a ordem e a felicidade de volta, os eleitores seriam estimulados a um envolvimento entusiasmado com esse processo restaurador. A felicidade já predomina numa atmosfera de "certeza" de que "things get only get better", como sugere o slogan da campanha trabalhista. Parece um video-clip no melhor estilo fell-good que os ingleses incorporavam até mesmo no seu cinema.
      Propaganda trabalhista para a semana das eleições de 1997

    
    Nesta campanha de 2010, porém, os políticos tradicionais eram os trabalhistas, há 13 anos no poder. Nesse contexto, a lógica se inverteu, de modo que os conservadores tinham que retratar como desolador o cenário britânico construído pelo governo trabalhista e, ao mesmo tempo, tinham que se apresentar como os "heróis" capazes de restaurar a ordem e a felicidade. Inclusive, essa inversão de posições não trouxe apenas uma inversão na utilização das mesmas e desgastadas técnicas, mas também uma SONORA contradição: o Conservative Party afirmava em seu slogan que somente ele seria capaz de fazer mudanças: Vote for Change, Vote Conservative.
Propaganda dos Conservadores contra os Trabalhistas, 2010

    No que se refere à segunda característica marcante desta última campanha, ou seja, a consolidação de um estilo presidencialista na comunicação com o eleitor, ocorreu um fato inédito e, certamente, histórico. Pela primeira vez, os postulantes ao cargo executivo se enfrentaram numa sequência de debates transmitidos pela televisão. À parte os debates desta eleição, já vinha se consolidando um estilo de discursos em eventos públicos nos quais os "candidatos" a Primeiro Ministro sobem ao púlpito para defender suas plataformas políticas. David Cameron não somente utilizou essa estratégia como conseguiu incorporar todo o gestual dos candidatos a Presidente, tão conhecidos dos países latino-americanos e dos Estados Unidos.
Consolidação da campanha no estilo presidencialista
    Mas, a maior inovação foi realmente a realização dos debates entre os "candidatos" aos aposentos da Downing Street, 10. Tudo começou com uma provocação de David Cameron, num debate costumeiro entre o líder da oposição e o líder do governo na Casa dos Comuns. Cameron desafiou Gordon Brown a enfretá-lo num debate, no qual o público pudesse finalmente avaliar de maneira comparativa as idéias, os programas e a capacidade de cada um dos postulantes ao cargo de Primeiro Ministro. O resultado foi uma sequência de debates transmitidos pela TV, tendo como protagonistas os três principais líderes partidos e postulantes à pasta de chefe do Executivo: Gordon Brown, do Labour Party, David Cameron, do Conservative Party, e Nick Clegg, do Lib-Dem.
    O fato inusitado é que, sendo um sistema parlamentarista, o Reino Unido não promove eleição direta para o chefe do Executivo. O Primeiro Ministro é indicado pelo parlamento. Então, quando os postulantes à indicação do parlamento decidem se enfrentar num debate, temos como consequência o fato de que, provavelmente, na decisão do voto, os eleitores poderão levar mais em conta quem será o indicado como Primeiro Ministro do que propriamente o candidato ao parlamento pelo seu distrito. Tais debates, portanto, reforçam ainda mais o estilo presidencialista que gradualmente se impõe no regime parlamentarista britânico.
Primeiro debate entre os "Candidatos" a Primeiro Ministro

"ONCE THE BABIES HAVE BEEN KISSED!" Depois do bom desempenho do líder do Lib-Dem, Nick Clegg, nos primeiros debates travados em rede televisiva entre os postulantes à pasta de Primeiro-Ministro [PM], cogitava-se que os liberais-democratas teriam um desempenho histórico, superando significativamente a quantidade de cadeiras que haviam conquistado na última eleição. Inclusive, as pesquisas de intenção de voto apontavam nessa direção, mostrando ainda que o Partido Trabalhista deveria perder um número considerável de vagas no parlamento. Mas, terminada a campanha, depois de todos os "beijos dados nas criancinhas" diante das câmeras de TV, os resultados que saíram das urnas não confirmaram plenamente as expectativas. De fato, os trabalhistas perderam cadeiras, mas não tantas quanto se supunha, e o Lib-Dem, ao contrário do previsto, também viu reduzido seu número de assentos em Westminster. Apesar disso, como já destacado, Nick Clegg e seu partido ficaram numa posição bastante confortável, pois os votos se fragmentaram de tal modo entre os três principais competidores que somente uma coalizão que incluísse o partido Liberal-Democrata poderia assegurar a posição do Chefe do Executivo.
    Na tabela abaixo [fonte: BBC/Elections], podemos observar em detalhes como se distribuíram os votos dos britânicos, incluindo-se a contagem de quantos distritos cada partido ganhou e perdeu, seja em termos relativos, seja em termos absolutos. No cômputo geral, os trabalhistas perderam 91 cadeiras e o Lib-Dem perdeu 5, enquanto isso, os conservadores ganharam 97 cadeiras em relação ao total de que dispunham até então.

     Resultados Eleitorais no Reino Unido
    
    A tabela também mostra algo geralmente pouco conhecido pelo público em geral: há bem mais do que apenas 2 ou 3 partidos no Reino Unido. Como sempre são mencionados apenas os dois partidos que dominam o parlamento, o Conservative Party e o Labour Party, e, mais recentemente, o Lib-Dem, a idéia que muitas pessoas têm a respeito do sistema partidário britânico é de que lá existem poucos partidos. Mas, na verdade, apesar do sistema eleitoral que distorce a representação, há uma variedade de legendas partidárias. Inclusive, há diversos partidos bastante localizados, por causa das características de um "reino", como o Democratic Unionist Party, o Scottish National Party e o Sinn Fein que, nessa eleição, conquistaram 8, 6 e 5 cadeiras respectivamente. O Sinn Fein se restringe à Irlanda do Norte e, o Scottish National Party, à Escócia. Porém, nos distritos escoceses, o predomínio ainda é do Partido Trabalhista, especialmente no Sul; o Lib-Dem, por sua vez, teve bom desempenho no Norte. Já na Irlanda do Norte, o melhor desempenho regional não foi do Sinn Fein, mas do Democratic Unionist Party. Em Gales, a disputa foi equilibrada, com ligeira vantagem para o Lib-Dem e um bom desempenho do Plaid Cymru. Na Inglaterra, o Partido Trabalhista dominou alguns distritos do Norte, enquanto o Lib-Dem teve melhor desempenho no Sul. Mas, o melhor desempenho nos distritos ingleses foi mesmo do Partido Conservador. Até mesmo nos distritos da região de Notting Hill, tradicionalmente trabalhista, houve predomínio dos conservadores. Confira o mapa detalhado dos resultados eleitorais no site especial da BBC, cuja cobertura tanto na TV como na internet poderiam servir de "inspiração" para as redes televisivas brasileiras nas eleições deste ano [LinkBBC/Elections].

O "BEIJA-MÃO" DA RAINHA SELA A POSSE DE CAMERON. Terminado o intenso final de semana de negociações entre o Conservative Party e o Lib-Dem, resultando numa coalizão majoritária com 363 votos na Câmara dos Comuns, deu-se início à ritualística de transmissão do cargo de Prime-Minister. Diferentemente da cerimônia de posse dos regimes presidencialistas, às quais nós brasileiros estamos habituados, no Reino Unido não há um longo período entre a eleição e a posse do novo governo, em cujo dia o país fica praticamente parado para assistir o espetáculo da entrega da faixa presidencial. No Reino Unido, imediatamente depois do resultado eleitoral, tem início a mudança de toda a família "primeiroministerial" que habita o número 10 da Downing Street
    Assim, o Primeiro-Ministro que deixa o cargo já comunica sua renúncia diante do prédio-sede de seu governo e dali segue direto para o Palácio de Buckingham [site do Buckingham Palace], onde comunica ao monarca, no caso, sua Majestade, Rainha Elizabeth, que deixa o cargo porque já não dispõe de apoio majoritário no parlamento para exercer as atribuições de Chefe do Executivo. Em seguida, sugere à Chefe de Estado - sim, a Rainha é a Chefe de Estado - que indique ao parlamento seu apoio para que o líder do partido mais votado forme um novo gabinete governamental. A cerimônia não dura mais do que uns 15 minutos. Cerca de dois quartos de hora depois da saída do já ex-Primeiro-Ministro, chega ao Palácio aquele que assumirá o posto para obter da Rainha sua investidura no cargo. Trata-se do ritual do "beija-mão".
    Embora se saiba que hoje em dia já não acontece realmente a genuflexão e o beijo nas mãos, ainda se usa o termo kissing hands para o encontro entre o/a monarca e aquele que será investido da honraria de servir à Coroa como Chefe do Governo. Portanto, o convite que a Rainha Elizabeth fez a David Cameron para formar o novo governo britânico ocorreu sob a medieval denominação "invitation to kiss hands"
    Em realidade, o kissing hands é um termo constitucional ainda mantido pelos ingleses e que tem raízes na Idade Média, quando beijar a mão do soberano era um gesto de lealdade e de fidelidade. Aliás, vinda do latim fidelitas, fidadelidade significava acima de tudo a formalização de um aliança fundada na fé que cada uma das partes depositava, uma na outra, de que persistiria uma relação segura de confiança. Revestida de um caráter religioso, essa aliança de fé foi estendida à relação conjugal, na qual o casamento é simbolizado justamente por um objeto cujo nome denota claramente o propósito da fidelidade: a aliança. Em termos políticos, a lealdade e a fidelidade eram os pilares da sociabilidade feudal, pois o "beija-mão" era o ápice do juramento de compromisso entre o vassalo e o Senhor.
    Na Europa dos Séculos XVII, XVIII e XIX, esse gesto foi transformado numa maneira cavalheiresca e formal de cumprimento entre um homem e uma mulher, mostrando elegância e cortesia. Semelhante à devoção da vassalagem amorosa, o ato em si consistia num momento fugaz, porém, intenso, no qual nunca se deveria, de fato, beijar a mão da dama. O cavalheiro deveria apenas se curvar ligeiramente, segurar a mão da dama e aproximar-lhe os lábios, mas não encostar em seu dorso. No Século XX, esse gesto caiu em desuso na maioria dos países, por ser considerado antiquado. Há países, porém, como a Turquia, em que é de praxe beijar as mãos de pessoas mais velhas de ambos os sexos. Esse ritual também persiste nas relações de reconhecimento de autoridade religiosa, como no caso dos católicos, em que os fiéis ainda beijam as mãos dos padres, que beijam as mãos dos bispos, arcebispos e cardeais, que beijam as mãos do Papa, que também são beijadas pelos leigos, como o "ilustre" leigo e muito fiél Berlusconi, flagrado no ato do "beija-mão" papal, na foto acima.
    
    Considerado antiquado pelos "plebeus", republicanos e pouco religiosos, o ato de "beija-mão" persiste na Igreja e no modelo constitucional de Westminster - embora neste caso seja algo meramente alusivo. Aproveitando o ensejo, será que se o plebiscito realizado no Brasil, em 1993, regulado pela lei número 8.624, de 4 de fevereiro do mesmo ano, sobre a forma de governo tivesse dado vitória ao regime monarquista teríamos revivido esse ritual tão caro aos britânicos? Só para completar a informação, o plebiscito ainda colocava em votação a escolha entre presidencialismo e parlamentarismo. Ao lado, os resultados da decisão dos brasileiros sobre a questão.     Pouquíssimos brasileiros foram favoráveis à adoção da monarquia. As abstenções foram elevadas, assim como as porcentagens de votos nulos e em branco. No caso da forma de governo, somam 17,6%; no caso do sistema de governo, somam 14,77%. Se juntarmos os votos em branco, nulos e as abstenções, teremos o que pode ser chamado de alienação eleitoral ou de defecções, cujos resultados foram: 43,3% e 40,47%, respectivamente. Ou seja, um grau elevado de desinteresse pelo tema ou de desconhecimento do que se tratava, ou ainda as duas coisas. Seja como for, os votos favoráveis ao presidencialismo e à república foram expressivos. Provavelmente, nunca mais deveremos ter outro plebiscito sobre a adoção da monarquia, mas, sobre a adoção do parlamentarismo, isso é algo que pode vir a ocorrer. Os adeptos do parlamentarismo no Brasil ainda sonham com a implantação desse modelo político no país, conforme alguns puderam expressá-lo no desenho constitucional de 1988, em parte previsto para funcionar com um sistema parlamentarista.

GOVERNO DE COALIZÃO, HUNG PARLIAMENT. O Conservative Party voltou a Downing Street-10 depois de 13 anos. Mas, sozinho, dificilmente atravessaria as portas escuras do prédio que, desde 1730, é associado ao exercício do governo no Reino Unido [Link para o site da Downing Street-10]. Foi necessária uma full coalition com o Partido Liberal-Democrata para que se chegasse à posição de força política majoritária no parlamento, condição necessária não para indicar o Primeiro-Ministro, mas para garantir um governo estável. Membros do Lib-Dem foram nomeados para o gabinete ministerial, assim como o próprio Nick Clegg, líder do partido, assumiu a função de Vice-Primeiro-Ministro, o que lhe garantirá participação mais ativa no governo. 

    Ambos os partidos tiveram que ceder espaços em suas agendas para que a coalizão fosse possível, mas o fato mais importante é que os liberais nunca tiveram tanta relevância no cenário político britânico desde que deixaram de ser uma das duas forças partidárias mais importantes, ainda no início do Século XX. Além disso, o Lib-Dem conseguiu o compromisso de que Cameron chamará alguma forma de consulta popular a respeito da possibilidade de alteração do sistema eleitoral, para que seja introduzido algum mecanismo de representação proporcional. Abaixo, o documento programático assinado por Cameron e Clegg, que celebra a full coalition.
Coalition Programme

    Apesar da coalizão obtida formal e integralmente, essa é uma situação inusitada e, de certo modo, bastante insegura para os britânicos. Em toda sua história, houve apenas uma experiência de governo de coalizão, num momento muito especial, logo depois da Segunda Guerra, quando as forças partidárias chegaram a um compromisso geral para a reconstrução do país. Já a situação de hung parliament foi enfrentada várias vezes desde a segunda metade do Século XIX, resultando sempre em governos minoritários - aparentemente, a expressão "hung parliament" foi utilizada pela primeira vez pelo jornalista Simon Hoggart, do jornal The Guardian, em 1974.
    Até as reformas eleitorais de 1867 e 1884 [Reform Acts], que estenderam o sufrágio e levaram ao redesenho dos distritos eleitorais, os partidos Liberal e Conservador sempre se revezaram no poder, com governos amplamente majoritários. Mas, já sob a nova legislação, as eleições gerais de 1885 possibilitaram o crescimento do Irish Parliamentary Party, levando à primeira situação de hung parliament. Sem conseguir formar um governo de coalizão, os britânicos fizeram novas eleições gerais em 1886, quando os conservadores voltaram a ter a maioria das cadeiras do parlamento, mas sem atingir o número suficiente para se constituir como força uma partidária com maioria absoluta.
    Até a eclosão da Primeira Guerra, essa situação voltou a se repetir várias vezes, quando houve um interregno do parlamento minoritário até as eleições de 1929. Essas eleições foram importantes por dois motivos: em primeiro lugar, foi a primeira em que foi permitida a participação de mulheres com menos de 3o anos de idade; em segundo lugar, foi a eleição que consolidou a ascensão do Partido Trabalhista como uma das duas maiores forças partidárias do Reino Unido, suplantando o até então imbatível Partido Liberal. Inclusive, os trabalhistas lograram conquistar a maioria das cadeiras da Casa dos Comuns, garantindo o direito de indicar o Primeiro-Ministro - Ramsay MacDonald. Mas, apesar da vitória histórica que realinhou o sistema partidário britânico, os trabalhistas não conquistaram a maioria absoluta das cadeiras e tiveram que instalar um governo minoritário. 
    Em 1974 ocorreria a primeira situação de hung parliament depois da Segunda Guerra. Nessa eleição, os liberais conquistaram muitos votos, desequilibrando o jogo Lab-Con. O Primeiro-Ministro da época, o conservador Edward Heath, tentou permanecer no cargo por meio de uma coalizão com o Partido Liberal, mas suas negociações não levaram à aliança. Harold Wilson, que já havia sido Primeiro-Ministro antes de Heath, acabou retornando ao cargo junto com os trabalhistas. Mas, seu governo minoritário enfrentou várias dificuldades, num período de grande crise econômica mundial. Wilson resolveu então convocar novas eleições para Outubro do mesmo ano, quando finalmente fez com que o Partido Trabalhista conquistasse a maioria absoluta das cadeiras de Westminster
    Agora, nas eleições gerais desse ano, o drama do governo minoritário ameaçava entrar em cena novamente, mas Cameron conseguiu costurar um acordo com o Lib-Dem, de modo a formar o segundo governo de coalizão do Reino Unido. Sua estabilidade deverá ser testada ao longo deste ano. 
    A propósito, uma boa dica de leitura sobre o tema é a seguinte: David Butler (1986), Governing Without a Majority: Dilemmas for Hung Parliament in Britain. Butler era um acadêmico que se enveredava pelo recente mundo do jornalismo televisivo. Sociólogo e cientista político, formado em Oxford, onde também foi professor, juntou-se a outro acadêmico, o sociólogo Robert McKenzie, para analisar as estatísticas eleitorais nas coberturas da BBC de 1950 a 1979. McKenzie, embora fosse canadense, havia se instalado em Londres para fazer doutorado e acabou ficando por lá, vindo a se tornar professor da London School of Economics
 Ambos aperfeiçoaram o famoso swingometer - criado de maneira precária por Peter Milne - e utilizaram esse "aparelho" pela primeira vez na cobertura que a BBC fez das eleições gerais de 1955. Desde então, o swingometer virou a grande atração das coberturas eleitorais da rede pública britânica, passando a ser executado por computação gráfica a partir de 2001, e continua cada vez mais sofisticado, como pode ser notado na cobertura dessa última eleição. Esse "aparelho" mostra ao telespectador a troca de votos e de cadeiras parlamentares entre os partidos. Outra dica: Robert MacKenzie escreveu um livro clássico sobre os partidos britânicos, publicado em 1955, com o título: British Political Parties: The Distribution of Power Within the Conservative and Labour Parties. Tanto esse livro como o de Butler indicado acima podem ser encontrados na Amazon. Ao lado dos livros de Maurice Duverger [Os Partidos Políticos, 1951] e Sigmund Neumann [Os Partidos Políticos Modernos, 1956], esse trabalho de Mckenzie é considerado um dos primeiros estudos sistemáticos sobre as organizações partidárias modernas.
    Na primeira foto acima, o primeiro à esquerda é Butler e, o último, à direita, Mckenzie, na cobertura das eleições de 1979, tendo ao fundo o swingometer. Na foto abaixo, temos uma panorâmica do estudúdio da BBC na cobertura das eleições de 1955, com Mckenzie à frente do swingometer, explicando as oscilações de votos entre os partidos.

OS DESAFIOS DO NOVO GOVERNO. Segundo relatório da Comissão Européia, o déficit público do Reino Unido, que já é o maior dentre os 27 países da União Européia, deverá atingir neste ano a marca de 12% de seu PIB. Uma margem segura seria algo em torno de 3% ou 4%, estourando, 5%. Portanto, a situação econômica dos britânicos é bastante delicada, o que coloca uma séria de desafios ao governo conservador/liberal-democrata. Geralmente, a receita para esses casos é uma política monetária restritiva, o que significa redução drástica dos gastos públicos, o que sempre é muito impopular, como mostram os acontecimentos recentes na Grécia. 
    Preocupados com a crise econômica, e manifestando sua posição historicamente conservadora, o jornal Financial Times e a revista The Economist deram apoio ao líder do Partido Conservador e alertaram seus leitores para o "perigo" de um governo de coalizão nesse momento crítico para a economia do Reino Unido. O Financial Times, inclusive, abriu espaço em suas folhas para o reaparecimento da "dama de ferro" Margaret Thatcher, num artigo de óbvia defesa do programa do seu partido. 
    Na campanha eleitoral, os conservadores responsabilizaram os trabalhistas pela precária situação econômica do país, enquanto os trabalhistas avisaram aos eleitores que se os conservadores voltassem ao poder imporiam corte de benefícios, violando os direitos sociais, como no caso do sistema de saúde. Diante desse jogo de "empurra-empurra", os eleitores, contrariando a preferência do mercado financeiro, "optaram" por um hung parliament, retirando os trabalhistas do governo, mas, ao mesmo tempo, dando uma maioria insuficiente aos conservadores. 
    Quando Thatcher assumiu o governo, em 1979, o enfrentamento da crise econômica daquele período envolveu o retorno às práticas liberais que haviam sido desacreditadas pelo crash de 1929. O mote seguido foi "menos governo e mais mercado". Seriam diferentes as políticas de Cameron para a crise atual? Aquele mote agora soaria um tanto descompassado, em face da crise econômica de 2008/2009, quando coube aos Estados Europeus e Norte-Americano a tarefa de consertar os estragos advindos do mercado desregulado. Em seu discurso de posse, Cameron deu a deixa da "saída pela tangente" desse aparente dilema [Estado ou mercado?]. Segundo ele, caberá agora à sociedade as responsabilidades pelos rumos econômicos do país e que, portanto, o momento demandava que a ênfase deixasse de recair sobre os direitos para se concentrar nos deveres dos cidadãos para com a nação. Claramente, trata-se de um eufemismo para avisar que haverá corte nos gastos públicos, com a consequente redução dos gastos sociais. 
    De certo modo, o déficit público que ajudou a bancar a especulação que levou à crise econômica, e que cresceu ainda mais quando o Estado teve de socorrer o mercado, especialmente o financeiro, surge mais uma vez como os custos com quais toda a sociedade terá de arcar. Sem poder apelar para as soluções de mercado, em crise e "salvo" pelo Estado, e sem poder se apoiar no próprio Estado, também em sérias dificuldades financeiras, sobrou o apelo à sociedade. Caberá à sociedade britânica, portanto, "adaptar-se" aos novos tempos para, como já sugeriu seu ilustre representante, Charles Darwin, sobreviver nesse novo ambiente econômico hostil. Os britânicos terão que aprender rapidamente aquilo que já é algo bastante conhecido dos brasileiros: o "se-virismo". Terão de "se virar" para aguentar as políticas restritivas que estão a caminho.
    O problema é que na Grécia, local onde foi "inventado" o demos, as políticas de redução de gastos públicos e de salários em geral finalmente levaram aquela entidade à Ágora, não aquela da festiva região de Placa, bairro onde fica o sítio histórico da Ágora dos tempos de Sócrates, mas sim à frente do parlamento, localizado bem diante da praça de Sintagma [foto ao lado]. Como, então, o Reino Unido conseguirá, com um governo de coalizão, impor à sociedade as políticas amargas que provavelmente terão de ser adotadas? Se o governo Thatcher, segundo vários analistas, teria levado à redução do Estado, será que o governo Con/Lib-Dem levará agora ao enfraquecimento da Sociedade Civil britânica? Ou será que o próprio governo de coalizão se enfraquecerá e o Reino Unido terá de realizar, em breve, novas eleições gerais? Tenho as perguntas, mas somente os próximos seis ou doze meses terão as respostas.

COMO FICARÁ O MODELO WESTMINSTER? Num livro de referência para os estudiosos de política comparada, o cientista político Arend Lijphart sistematizou as características de dois "modelos de democracia" [que também é título do livro, traduzido em português pela editora Civilização Brasileira]: o modelo consensual e o modelo Westminster. O primeiro seria um modelo constitucional baseado na fragmentação da soberania, atribuindo a vários atores e várias instituições algum naco de poder político para vetar as políticas de outros atores e instituições. Os países com tal modelo teriam um Poder Legislativo bicameral [Câmara Baixa e Câmara Alta/Senado]; sistemas eleitorais proporcionais, produzindo sistemas multipartidários; arranjos federativos bastante descentralizados e assim por diante. Nesses países, o Poder Executivo é formado a partir de coalizões partidárias e as decisões políticas são extensivamente negociadas, inclusive, em alguns casos, com os governos das unidades federativas. Contrariamente, o modelo Westminster, referência explícita ao Reino Unido, teriam governos unipartidários, com Poder Legislativo unicameral. O sistema eleitoral majoritária garantiria o bipartidarismo, necessário à maioria legislativa imprescindível para a indicação do Primeiro-Ministro.

 Mas, depois de vários governos minoritários, desde o Século XIX, depois do realinhamento partidário do final dos anos 1920, quando os trabalhistas suplantaram os liberais, e depois da retomada da votação dos liberais, numa fusão partidária com o Social Democratic Party, em 1988, que resultou no Lib-Dem, como ficaria a suposta eficiência desse modelo no que se refere à produção de maiorias absolutas a um único partido, de forma a garantir um gabinete monopartidário? As demandas cada vez mais eloquentes por uma reforma eleitoral que introduza algum tipo de representação proporcional certamente levarão a maior justiça na representação dos partidos no parlamento [foto acima: parlamento britânico], em consonância com a votação de que já dispõem, sem mencionar que tal modificação incentivará vários eleitores estratégicos a votar nos seus partidos preferidos em primeiro lugar. 
     Tudo isso indica que, se aprovada essa reforma eleitoral, o Reino Unido virá a ter um sistema multipartidário e os governos de coalizão passarão a ser uma necessidade rotineira. Na verdade, o sistema britânico já não é mais bipartidário, pois o desempenho do Lib-Dem, mesmo com sua subrepresentação em função da fórmula eleitoral majoritária, dá claros sinais de um sistema com 3 partidos, ou seja, um multipartidarismo moderado. Portanto, em que medida os britânicos estariam enfrentando não apenas uma crise econômica, mas igualmente uma crise de seu modelo político? Em que medida as adaptações que resultarão das possíveis reformas não criariam rachaduras no "estável" modelo de Westminster, cujas virtudes vem sendo pontuadas desde o seminal trabalho de Walter Baghot, no Século XIX? Estaria o modelo Westminster se dissolvendo para dar lugar ao modelo consensual de governos de coalizões multipartidárias? Como ficará o sistema parlamentarista britânico diante da lógica presidencialista que vem caracterizando cada vez mais seus governos?