Ficha Limpa: Legislação para Eleitor ver?

CAIU A FICHA... LIMPA. O projeto denominado Ficha Limpa, aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados, foi sancionado, sem vetos, pelo Presidente Lula nesta última sexta-feira, dia 05, e publicado no Diário Oficial da União de hoje. Esse projeto torna inelegível por oito anos qualquer possível postulante a cargo representativo que tenha sido condenado – crimes eleitorais que levem à prisão, improbidade administrativa, abuso de poder político e crimes dolosos com penas superiores a dois anos – por mais de um juiz, ou seja, por decisão colegiada. Entretanto, fica garantido ao condenado o que vem sendo chamado de “efeito suspensivo”, o que significa que ele pode solicitar, com prioridade e rapidez garantidas, que sua condenação seja reavaliada por outro colegiado da Justiça, com a finalidade de obter a suspensão da decisão anterior.
    O Ficha Limpa é um projeto de iniciativa popular, coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral [MCCE], uma organização composta por 44 entidades de grande representatividade [membros nacionais]. Foi protocolado no Poder Legislativo em Setembro de 2009 e conseguiu a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores. Veja abaixo uma das peças de propaganda do MCCE.


    
    De lá pra cá, até a sanção presidencial, houve pelo menos duas alterações substantivas na versão original, realizadas pelo parlamento. Inicialmente, o projeto propunha que fossem considerados inelegíveis todos aqueles que tivessem sido condenados em primeira instância, o que, obviamente, dava maior amplitude à aplicação da medida. Porém, esse dispositivo foi alterado e a punição passou a ser aplicada apenas aos condenados por colegiados da Justiça, reduzindo-se a incidência dos casos às condenações de segunda instância ou de foros privilegiados. 
    A segunda redução da incidência da lei ocorreu com a alteração que o senador Francisco Dornelles [foto ao lado], do PP do Rio de Janeiro, promoveu com sua emenda, digamos, "gramatical" numa frase, modificando seu tempo verbal. Assim, onde se lia que a punição aplicar-se-ia aos que “tenham sido” condenados, agora se lê que a punição será imposta aos que “forem” condenados. Portanto, a lei terá validade para os casos futuros, fazendo do passado nada mais do que “águas passadas...”, o que significa garantir a elegibilidade até mesmo de Maluf um dos pouquíssimos que seriam atingidos pela nova regra.
    Seja como for, agora finalmente convertido na Lei Complementar 135, o Projeto Ficha Limpa provocou enorme satisfação em diversas pessoas, preocupadas com a “moralidade” política, especialmente porque, segundo elas: (1) tratou-se de um projeto de iniciativa popular, um instrumento constitucional de democracia direta ou “semi-direta” - dependendo de como se teorize a questão -, que possibilita o fortalecimento da sociedade civil; (2) apesar das alterações no projeto original, o mais importante é que, durante alguns meses, fez-se ampla discussão acerca do tema, colaborando para o maior envolvimento da população com os processos políticos do país; e (3) trata-se de mais um tijolo numa estrutura legal que vem sendo desenhada lentamente e que resultará num edifício político mais transparente e sujeito ao controle público. Aliás, a lei de combate à corrupção eleitoral e o fim do voto secreto no parlamento seriam os outros dois tijolos já assentados sobre os quais essa nova lei é cimentada.
    Porém, em que medida as alterações promovidas pelos parlamentares não teriam tornado a medida inócua, fazendo crer que se avançou bastante no processo de "moralização" política quando todo o debate e a letra da lei não passariam de "sofismas" para "eleitor ver"? E ainda, esse projeto de iniciativa popular, de fato, representaria o fortalecimento desse mecanismo de democracia participativa instituído pela Constituição de 1988? Depois de mais de 20 anos de vigência da Constituição cidadã, segundo a célebre apresentação da carta magna à sociedade pelo constituinte Ulisses Guimarães, qual o real grau de utilização desse instrumento pela Sociedade Civil brasileira? O parlamento dispõe de recursos e instâncias adequados para o acolhimento e a rápida tramitação de projetos dessa natureza? E como harmonizar o paradoxo constitucional imposto por essa lei complementar, que prevê alguma forma de punição antes da condenação final, "flexibilizando" o pressuposto da inocência até que se prove o contrário e que se julgue, em definitivo, o acusado?


QUEM TERÁ A FICHA SUJA COM A LEI FICHA LIMPA? Todo o estardalhaço envolvido no debate iniciado pelo Projeto Ficha Limpa e toda a comemoração com sua aprovação pelo parlamento e, agora, com a sanção presidencial, não podem esconder um fato rodriguiano, ou seja, um óbvio ululante: pouquíssimos casos poderão ser enquadrados na nova lei. Com a alteração na versão original, estabelecendo que a inelegibilidade somente será aplicada aos condenados por colegiado da Justiça, reduziu-se significativamente o escopo da medida.
   Num levantamento realizado pela Folha de São Paulo, foi possível identificar que, dentre os 73 congressistas de São Paulo da atual legislatura [70 deputados federais e 3 senadores], 37 estavam em um destas três situações: ou já foram condenados em primeira instância, ou foram indiciados ou já são réus. Mas, como não foram condenados por um grupo de juízes [segunda instância ou foro privilegiado], nenhum deles estaria sujeito  à aplicação da nova lei. Na verdade, quando consideramos ainda os 37 líderes partidários do estado, apenas um seria enquadrado na segunda versão da lei - Paulo Maluf. Porém, com a emenda "gramatical" de Francisco Dornelles, coincidentemente colega de partido e amigo de Maluf, nem mesmo o líder do PP seria impedido de se candidatar, pois, na versão final, a aplicação da lei não pode incidir sobre o que já foi julgado antes de sua sanção pelo Presidente da República.
    Além disso, outro grande problema é que aqueles que já ocupam cargos eletivos têm direito ao foro privilegiado, instância na qual a morosidade do processo é considerável. Assim, enquanto não sai nenhuma condenação dessa instância, todos os acusados continuam gozando dos direitos de elegibilidade. Portanto, dos poucos casos que virão a se enquadrar na nova lei, a maior parte deles provavelmente compreenderá candidaturas novas. Isso porque os candidatos novos, ou seja, aqueles que não ocupam nenhum cargo eletivo no momento da candidatura, não dispõem de foro privilegiado, e o julgamento de seus casos pode ocorrer com um pouco mais de rapidez - mas, claro, a rapidez do sistema judicial brasileiro. Então, se nem Maluf se enquadra na lei, quem seria pego por ela?


PROJETOS DE [BAIXA] INICIATIVA POPULAR. Apesar da Constituição brasileira instituir o mecanismo da apresentação de projeto de lei de iniciativa popular, regulamentado pela Lei 9709/98, que também regulamenta referendos e plebiscitos, até o momento, apenas 4 projetos desse tipo foram aprovados. Há duas razões para isso: em primeiro lugar, o número de projetos de iniciativa popular apresentados é baixíssimo, em decorrência das dificuldades de serem cumpridas todas as exigências formais para que tais projetos sejam protocolados na Secretaria-Geral da Mesa da Câmara; em segundo lugar, porque essa Secretaria-Geral já se pronunciou incapacitada para receber e protocolar devidamente os projetos de iniciativa popular.
   As dificuldades para a apresentação desse tipo de projeto residem nas exigências constitucionais estabelecidas para tanto: (1) deve ser apresentado na Câmara um abaixo-assinado que subsidie a proposta, (2) o projeto deve ser subscrito por pelo menos 1% do eleitorado nacional, (3) as assinaturas devem ser distribuídas por pelo menos cinco estados, (4) para cada estado não deve haver menos do que três décimos por centro dos eleitores totais de cada um deles e (4) junto com as assinaturas devem constar os números dos respectivos títulos eleitorais. Assim, a logística para a coleta das assinaturas é bastante complexa, sem contar que quase nunca os eleitores, geralmente abordados na rua, carregam consigo seus títulos eleitorais, nem lembram de seu número. Coletar apenas a assinatura não é suficiente; supor que o eleitor volte no dia seguinte para preencher o número do título também é inconcebível, pelo menos para a maioria dos casos. Desse modo, os projetos de iniciativa popular acabam sendo projetos de iniciativa de algumas grandes organizações sociais.
    Mas, mesmo que se consiga cumprir todas as exigências, há um segundo grande obstáculo a ser vencido, e o retrospecto não tem sido nada favorável à iniciativa popular. A Secretaria-Geral da Mesa da Câmara, responsável por receber e protocolar os projetos, tem a incumbência de verificar toda a documentação e atestar a autenticidade das assinaturas e dos respectivos números dos títulos eleitorais. Diante disso, a Secretaria já se declarou incapacitada para a tarefa: não dispõe de recursos, nem de qualquer rotina tecnológica para conferir cada uma das milhares de assinaturas, bem como os números dos títulos de eleitor. Surgiu, assim, um paradoxo institucional-burocrático: para iniciar sua tramitação, o projeto de iniciativa popular precisa do protocolo da Mesa da Câmara, mas esta não autentica as assinaturas e, portanto, trava o processo legislativo já em seu nascedouro. A solução encontrada até agora foi a seguinte. Algum deputado ou grupo de deputados que simpatizarem com a causa "patrocinam" o projeto, ou seja, assinam o projeto para que seja iniciada sua tramitação sem maiores entraves. Dos quatro projetos aprovados até agora, três deles tiveram esse percurso. Então, os projetos de iniciativa popular, em sua grande maioria, conseguem tramitação somente quando deixam de ser projetos de iniciativa popular e se transformam em projetos de iniciativa parlamentar.
    Há ainda um terceiro obstáculo nessa via crucis desses projetos. Quando finalmente entram no processo legislativo, tramitam com uma vagareza desalentadora. O primeiro projeto de iniciativa popular aprovado, que estabeleceu o Fundo Nacional de Habitação, foi protocolado em Janeiro de 1992, e somente foi sancionado em 2005. A própria lei de combate à corrupção eleitoral [Lei 9840/99], que até já contribuiu para a cassação de vários políticos brasileiros, e que está associada ao Projeto Ficha Limpa, percorreu um longo caminho até ser sancionada. Embora sua tramitação tenha ocorrido em apenas 42 dias, foi extremamente demorado e difícil o processo de coleta de assinaturas e de seu acolhimento pela Mesa da Câmara. O projeto teve início na CNBB, em 1997, e encontrou sérias dificuldades para recolher todas as assinaturas necessárias de acordo com os critérios estabelecidos. Depois de envolver algumas centrais sindicais, a OAB e vários veículos de comunicação na campanha, finalmente foi atingido o montante necessário de assinaturas e o projeto foi entregue à Secretaria-Geral em 1999. Mas, então, constatou-se a impossibilidade de validação das assinaturas e a alternativa foi o "patrocínio" parlamentar: 11 deputados subscreveram o projeto em nome de seus partidos e outros 5o deputados assinaram o documento em apoio individual.
    Mais recentemente, outra possibilidade de projetos de iniciativa popular foi aberta, com a criação da Comissão de Legislação Participativa [CLP], em 2001. Os projetos, nesse caso, devem ser apresentados por entidades civis e as exigências são mais simples. Inclusive, esse mecanismo tem se mostrado um pouco mais ativo do que os PL de iniciativa popular com assinaturas individuais. Até o momento, foram apresentadas cerca de 300 propostas à CLP. 
    De qualquer modo, é extremamente baixa a utilização desses mecanismos de democracia direta ou semi-direta, incluindo-se os referendos e plebiscitos. Estes dois últimos, obviamente, dependem da iniciativa dos Poderes Constitucionais, mas os projetos de iniciativa popular, como o próprio nome diz, dependem da iniciativa do demos. Será que apenas as dificuldades operacionais impedem seu uso mais sistemático por parte da Sociedade Civil? Haveria alguma componente cultural nos meandros desse fenômeno que ajudariam a explicá-lo? Afinal, a participação não é reduzida apenas nao que se refere à utilização desses mecanismos constitucionais, mas igualmente em outras formas de manifestação mais informais, como os protestos públicos e as reivindicações.


PARADOXO CONSTITUCIONAL? O fundamento jurídico do Projeto Ficha Limpa foi buscado por seus proponentes no Artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição Federal. Lá se estabelece que os critérios de elegibilidade deverão ser fixados por legislação complementar e que tais critérios devem levar em consideração a trajetória do candidato. Com base nisso, o projeto, agora transformado em lei, propõe que seja impedido de se candidar pessoas que venham a ser condenados por órgão colegiado. Mas, da outra margem do rio vêm declarações de protesto contra o fundamento da nova lei. Na mesma Constituição Federal há garantias individuais que têm como pressuposto a inocência de todos até que o julgamento seja concluído e o réu definitivamente condenado. 
     Os defensores do projeto, em réplica, alegam que a punição não tem caráter criminal, mas preventivo, ou seja, ninguém será preso, apenas se previne que entre em cargos eletivos possíveis corruptos. Os críticos, em tréplica, argumentam que, de um modo ou de outro, trata-se de punição antecipada e que impedir alguém de se candidatar é tolher sua liberdade de ação. Enquanto isso, muitos acreditam que essa lei venha a gerar um conflito que desembocará no Supremo Tribunal Federal, a quem caberá a decisão acerca de qual fundamento deverá prevalecer.
    De forma geral, esse paradoxo constitucional impõe um dilema baseado no conflito entre a defesa da moralidade na política [favoráveis à lei] e a presunção da inocência [contrários à lei]. Do ponto de vista da Sociologia do Direito, trata-se de uma oposição entre a Sociedade, com seus valores particulares e transitórios, e o indivíduo, o portador abstrato de direitos universais e permanentes. Do mesmo modo, é um conflito entre a Sociologia Política e a Filosofia Moral [liberal]. E, talvez, entre Durkheim e Benjamin Constant? E você, caro leitor, preferiria defender o fundamento que tem como base última os valores sociais, que poderiam promover maior coesão e legitimidade das instituições políticas ou os princípios universais dos direitos individuais, que garantiriam as liberdades civis e os direitos políticos acima de qualquer coisa? Ou, será que haveria uma solução habermasiana para a questão: harmonizar ambos os princípios?

0 comentários:

Postar um comentário