As Eleições no Reino Unido: Rachaduras no Modelo Westminster?

UMA ELEIÇÃO SEM VENCEDORES. No dia 6 de maio, quinta-feira, o Reino Unido foi às urnas na eleição mais acirrada dos últimos tempos. Na agenda política, os temas mais polêmicos e urgentes que se apresentaram foram a crise econômica, que ainda faz vítimas na Europa – e, com os ingleses, não é diferente, especialmente no que se refere ao seu déficit público –, a controvérsia em relação aos imigrantes ilegais, os problemas sociais crescentes – como o aumento da pobreza e da desigualdade na distribuição da renda –, as dificuldades com o ensino em geral, principalmente o elementar, e a insatisfação popular com a participação inglesa na assim chamada "guerra contra o terrorismo", produto de uma parceria inusitada entre Tony Blair e G. W. Bush.
    Contabilizados os votos, confirmou-se a expectativa de redução do número de cadeiras no parlamento ocupadas pelo Partido Trabalhista e de obtenção da maioria dos assentos pelo Partido Conservador. Não obstante, os conservadores ficaram aquém do número mínimo necessário para ocupar a maioria absoluta dos 650 lugares na Câmara dos Comuns e foi surpreendentemente abaixo do espero o desempenho eleitoral do Partido Liberal-Democrata, o Lib-Dem. Conforme os dados do gráfico abaixo [Fonte: BBC/Elections], os conservadores obtiveram cerca de 30% dos votos, acrescentando 97 cadeiras a mais sobre a totalidade de que dispunha anteriormente. As quase 100 cadeiras conquistadas vieram dos trabalhistas e dos liberais-democratas, que perderam 91 e 5 cadeiras, respectivamente. As mudanças de voto entre trabalhistas e conservadores, conhecidas como swing vote, foram favoráveis ao Partido Conservador, com 5% de volatilidade eleitoral.

    Porém, apesar das cadeiras perdidas, o Lib-Dem saiu fortalecido de uma eleição que, para os padrões do modelo político britânico, não teve vencedor. Por quê? Porque embora tenham obtido a maioria dos votos e das cadeiras no parlamento, os conservadores não conquistaram as 326 cadeiras necessárias para formar o gabinete e governar sozinhos. Os trabalhistas, por sua vez, apesar de terem perdido a maioria que lhe garantia o direito de manter o Primeiro Ministro no cargo e governar isoladamente – como o fizeram nos últimos 13 anos –, ficando em segundo lugar na disputa, conquistaram um número de cadeiras suficiente para acalentar a possibilidade   de investir num plano B para manterem o governo no Reino Unido por mais um período. Esse plano B seria formar um governo de coalizão com o terceiro colocado, o Lib-Dem. No entanto, os conservadores tinham o mesmo plano B, e foi justamente essa conjuntura que levou o Lib-Dem, com suas 57 cadeiras, a se tornar a “dama” mais cortejada do sistema  partidário do Reino Unido ao longo do final de semana que se seguiu à eleição.
    O temor dos britânicos, apegados à sua tradição política de governos ocupados por um único partido, assim como do mercado financeiro, que clama por um governo forte e estável, seja em Westminster, seja no número 10 da Downing Street, seriam as conseqüências de um parlamento fragmentado, no qual nenhum partido dispõe da maioria absoluta das cadeiras, levando à formação ou de um governo minoritário – o pior cenário – ou de um governo de coalizão – cenário “menos pior”, mas ainda assim incerto, uma vez que os ingleses não dominam, por assim dizer, a “tecnologia” de condução de alianças político-partidárias e de coalizões governamentais, como outros países da Europa e até mesmo como o Brasil, cujo formato vem sendo denominado "presidencialismo de coalizão". 
    Portanto, os britânicos vivem agora um momento delicado de sua história política recente, mas também bastante interessante. Depois de mais de uma década de governo trabalhista, de ter sido considerado um dos exemplos de boa administração pública e de gestão macroeconômica da Europa, o Reino Unido enfrenta, de um lado, a pior crise econômica desde o Pós-Segunda Guerra, e, de outro, uma situação político-constitucional para a qual é totalmente inexperiente, qual seja: um parlamentarismo de coalizão em razão da fragmentação partidária na Casa dos Comuns, ou, como eles curiosamente costumam chamar, um hung parliament.
      Mas, como o sistema britânico, que adota a representação majoritária radical, conhecida como o modelo first-past-the-post, não conteve o crescimento de um terceiro partido, o Lib-Dem? Como seu plurality vote system não conseguiu a manutenção do bipartidarismo? Esse crescimento persistente dos Liberais, já há alguns anos, dinamizado pela fusão destes com os Democratas, resultando no atual Lib-Dem, seria evidência da necessidade de adoção de alguma forma de representação proporcional naquele país? Em que medida as próprias inovações nas campanhas eleitorais do Reino Unido, desde a ascensão de Tony Blair, levando à popularização da figura do Primeiro Ministro, culminando com o primeiro debate televisivo dos postulantes ao cargo nesta última eleição, não seriam sinais de que seu sistema parlamentarista funciona, cada vez mais, com uma lógica presidencialista? Em suma, em que medida todas essas características não seriam indicadores de rachaduras no modelo Westminster, assentado rigidamente sobre a representação majoritária e o governo parlamentarista?

A "AMERICANIZAÇÃO" DA CAMPANHA. Quem acompanhou esta última campanha eleitoral no Reino Unido pode perceber claramente duas características centrais. A primeira delas é que se consolidou o padrão norte-americano de propaganda política, incluindo-se as técnicas de marketing eleitoral e de relações públicas, neste último caso, no estilo inaugurado pelo famoso e, para alguns, famigerado Edward Bernays - o sobrinho de Sigmund Freud que se empenhou em aplicar as teorias psicanalíticas do tio à propaganda comercial e política. A segunda característica marcante foi reforçada pela primeira e consiste na imposição de uma dinâmica presidencialista num sistema que, contrariamente, é parlamentarista.
    Quanto à primeira característica, é fato que, desde as disputas eleitorais dos anos 1980, cada vez mais os britânicos "importaram" as técnicas de comunicação e de marketing eleitoral, inclusive o Partido Trabalhista que, com a campanha que levou Tony Blair à Downing Street-10, em 1997, abraçou de vez esse modo de "conquista" e "persuasão" dos eleitores. Veja abaixo uma peça de propaganda do Labour Party na qual é seguida à risca a receita já consagrada de "ataque" ao partido que está no governo, no caso, o Conservative Party. Essa técnica pressupõe três passos ou movimentos. Em primeiro lugar, deve-se caracterizar o mundo atual como altamente problemático, precário e quase sem esperança. Tal caracterização deve ser dramática, tanto nas imagens como nas informações e na trilha sonora.
                  Propaganda trabalhista na campanha de 1997
    
    O segundo passo da técnica de persuasão consiste em reforçar a situação problemática do contexto em que vive o eleitor, mas introduzir a esperança que parecia perdida. É um mote bastante comum na maioria dos filmes policiais ou dos famosos filmes de bang-bang. Os "bandidos" dominam um ambiente desolador até que, em certo momento, aparece o good-guy que trará de volta a ordem e a felicidade de todos. A peça abaixo segue esse plot e o herói é Tony Blair. Sua postura, sua fala, sua entonação devem mostrar segurança, convicção e liderança. Bem treinado, com a edição correta, parece que ele conseguiu a performance necessária para o caso.
  Propaganda dos trabalhistas apresenta Blair na campanha de 1997

    
    Para reforçar a imagem do candidato como the right man for the job, é preciso avaliar qual a "demanda" do eleitorado. Os eleitores estão cansados dos políticos tradicionais? Eles querem alguém jovem para revigorar a política ou eles querem alguém mais maduro que lhes transmita segurança? Naquele momento, era preciso alguém que mostrasse energia para mudar o cenário social e econômico e que, ao mesmo tempo, tivesse um perfil diferente  daquele que transparecia dos políticos tradicionais, especialmente dos conservadores. Então, a peça abaixo consiste na apresentação desse produto inovador ao eleitorado britânico.
        Propaganda trabalhista apresenta Blair "paz e amor", 1997

    
    O terceiro passo, bem executado pelos trabalhistas, consiste em se concentrar agora na "restauração do paraíso perdido". Convencidos de que Blair poderia trazer a ordem e a felicidade de volta, os eleitores seriam estimulados a um envolvimento entusiasmado com esse processo restaurador. A felicidade já predomina numa atmosfera de "certeza" de que "things get only get better", como sugere o slogan da campanha trabalhista. Parece um video-clip no melhor estilo fell-good que os ingleses incorporavam até mesmo no seu cinema.
      Propaganda trabalhista para a semana das eleições de 1997

    
    Nesta campanha de 2010, porém, os políticos tradicionais eram os trabalhistas, há 13 anos no poder. Nesse contexto, a lógica se inverteu, de modo que os conservadores tinham que retratar como desolador o cenário britânico construído pelo governo trabalhista e, ao mesmo tempo, tinham que se apresentar como os "heróis" capazes de restaurar a ordem e a felicidade. Inclusive, essa inversão de posições não trouxe apenas uma inversão na utilização das mesmas e desgastadas técnicas, mas também uma SONORA contradição: o Conservative Party afirmava em seu slogan que somente ele seria capaz de fazer mudanças: Vote for Change, Vote Conservative.
Propaganda dos Conservadores contra os Trabalhistas, 2010

    No que se refere à segunda característica marcante desta última campanha, ou seja, a consolidação de um estilo presidencialista na comunicação com o eleitor, ocorreu um fato inédito e, certamente, histórico. Pela primeira vez, os postulantes ao cargo executivo se enfrentaram numa sequência de debates transmitidos pela televisão. À parte os debates desta eleição, já vinha se consolidando um estilo de discursos em eventos públicos nos quais os "candidatos" a Primeiro Ministro sobem ao púlpito para defender suas plataformas políticas. David Cameron não somente utilizou essa estratégia como conseguiu incorporar todo o gestual dos candidatos a Presidente, tão conhecidos dos países latino-americanos e dos Estados Unidos.
Consolidação da campanha no estilo presidencialista
    Mas, a maior inovação foi realmente a realização dos debates entre os "candidatos" aos aposentos da Downing Street, 10. Tudo começou com uma provocação de David Cameron, num debate costumeiro entre o líder da oposição e o líder do governo na Casa dos Comuns. Cameron desafiou Gordon Brown a enfretá-lo num debate, no qual o público pudesse finalmente avaliar de maneira comparativa as idéias, os programas e a capacidade de cada um dos postulantes ao cargo de Primeiro Ministro. O resultado foi uma sequência de debates transmitidos pela TV, tendo como protagonistas os três principais líderes partidos e postulantes à pasta de chefe do Executivo: Gordon Brown, do Labour Party, David Cameron, do Conservative Party, e Nick Clegg, do Lib-Dem.
    O fato inusitado é que, sendo um sistema parlamentarista, o Reino Unido não promove eleição direta para o chefe do Executivo. O Primeiro Ministro é indicado pelo parlamento. Então, quando os postulantes à indicação do parlamento decidem se enfrentar num debate, temos como consequência o fato de que, provavelmente, na decisão do voto, os eleitores poderão levar mais em conta quem será o indicado como Primeiro Ministro do que propriamente o candidato ao parlamento pelo seu distrito. Tais debates, portanto, reforçam ainda mais o estilo presidencialista que gradualmente se impõe no regime parlamentarista britânico.
Primeiro debate entre os "Candidatos" a Primeiro Ministro

"ONCE THE BABIES HAVE BEEN KISSED!" Depois do bom desempenho do líder do Lib-Dem, Nick Clegg, nos primeiros debates travados em rede televisiva entre os postulantes à pasta de Primeiro-Ministro [PM], cogitava-se que os liberais-democratas teriam um desempenho histórico, superando significativamente a quantidade de cadeiras que haviam conquistado na última eleição. Inclusive, as pesquisas de intenção de voto apontavam nessa direção, mostrando ainda que o Partido Trabalhista deveria perder um número considerável de vagas no parlamento. Mas, terminada a campanha, depois de todos os "beijos dados nas criancinhas" diante das câmeras de TV, os resultados que saíram das urnas não confirmaram plenamente as expectativas. De fato, os trabalhistas perderam cadeiras, mas não tantas quanto se supunha, e o Lib-Dem, ao contrário do previsto, também viu reduzido seu número de assentos em Westminster. Apesar disso, como já destacado, Nick Clegg e seu partido ficaram numa posição bastante confortável, pois os votos se fragmentaram de tal modo entre os três principais competidores que somente uma coalizão que incluísse o partido Liberal-Democrata poderia assegurar a posição do Chefe do Executivo.
    Na tabela abaixo [fonte: BBC/Elections], podemos observar em detalhes como se distribuíram os votos dos britânicos, incluindo-se a contagem de quantos distritos cada partido ganhou e perdeu, seja em termos relativos, seja em termos absolutos. No cômputo geral, os trabalhistas perderam 91 cadeiras e o Lib-Dem perdeu 5, enquanto isso, os conservadores ganharam 97 cadeiras em relação ao total de que dispunham até então.

     Resultados Eleitorais no Reino Unido
    
    A tabela também mostra algo geralmente pouco conhecido pelo público em geral: há bem mais do que apenas 2 ou 3 partidos no Reino Unido. Como sempre são mencionados apenas os dois partidos que dominam o parlamento, o Conservative Party e o Labour Party, e, mais recentemente, o Lib-Dem, a idéia que muitas pessoas têm a respeito do sistema partidário britânico é de que lá existem poucos partidos. Mas, na verdade, apesar do sistema eleitoral que distorce a representação, há uma variedade de legendas partidárias. Inclusive, há diversos partidos bastante localizados, por causa das características de um "reino", como o Democratic Unionist Party, o Scottish National Party e o Sinn Fein que, nessa eleição, conquistaram 8, 6 e 5 cadeiras respectivamente. O Sinn Fein se restringe à Irlanda do Norte e, o Scottish National Party, à Escócia. Porém, nos distritos escoceses, o predomínio ainda é do Partido Trabalhista, especialmente no Sul; o Lib-Dem, por sua vez, teve bom desempenho no Norte. Já na Irlanda do Norte, o melhor desempenho regional não foi do Sinn Fein, mas do Democratic Unionist Party. Em Gales, a disputa foi equilibrada, com ligeira vantagem para o Lib-Dem e um bom desempenho do Plaid Cymru. Na Inglaterra, o Partido Trabalhista dominou alguns distritos do Norte, enquanto o Lib-Dem teve melhor desempenho no Sul. Mas, o melhor desempenho nos distritos ingleses foi mesmo do Partido Conservador. Até mesmo nos distritos da região de Notting Hill, tradicionalmente trabalhista, houve predomínio dos conservadores. Confira o mapa detalhado dos resultados eleitorais no site especial da BBC, cuja cobertura tanto na TV como na internet poderiam servir de "inspiração" para as redes televisivas brasileiras nas eleições deste ano [LinkBBC/Elections].

O "BEIJA-MÃO" DA RAINHA SELA A POSSE DE CAMERON. Terminado o intenso final de semana de negociações entre o Conservative Party e o Lib-Dem, resultando numa coalizão majoritária com 363 votos na Câmara dos Comuns, deu-se início à ritualística de transmissão do cargo de Prime-Minister. Diferentemente da cerimônia de posse dos regimes presidencialistas, às quais nós brasileiros estamos habituados, no Reino Unido não há um longo período entre a eleição e a posse do novo governo, em cujo dia o país fica praticamente parado para assistir o espetáculo da entrega da faixa presidencial. No Reino Unido, imediatamente depois do resultado eleitoral, tem início a mudança de toda a família "primeiroministerial" que habita o número 10 da Downing Street
    Assim, o Primeiro-Ministro que deixa o cargo já comunica sua renúncia diante do prédio-sede de seu governo e dali segue direto para o Palácio de Buckingham [site do Buckingham Palace], onde comunica ao monarca, no caso, sua Majestade, Rainha Elizabeth, que deixa o cargo porque já não dispõe de apoio majoritário no parlamento para exercer as atribuições de Chefe do Executivo. Em seguida, sugere à Chefe de Estado - sim, a Rainha é a Chefe de Estado - que indique ao parlamento seu apoio para que o líder do partido mais votado forme um novo gabinete governamental. A cerimônia não dura mais do que uns 15 minutos. Cerca de dois quartos de hora depois da saída do já ex-Primeiro-Ministro, chega ao Palácio aquele que assumirá o posto para obter da Rainha sua investidura no cargo. Trata-se do ritual do "beija-mão".
    Embora se saiba que hoje em dia já não acontece realmente a genuflexão e o beijo nas mãos, ainda se usa o termo kissing hands para o encontro entre o/a monarca e aquele que será investido da honraria de servir à Coroa como Chefe do Governo. Portanto, o convite que a Rainha Elizabeth fez a David Cameron para formar o novo governo britânico ocorreu sob a medieval denominação "invitation to kiss hands"
    Em realidade, o kissing hands é um termo constitucional ainda mantido pelos ingleses e que tem raízes na Idade Média, quando beijar a mão do soberano era um gesto de lealdade e de fidelidade. Aliás, vinda do latim fidelitas, fidadelidade significava acima de tudo a formalização de um aliança fundada na fé que cada uma das partes depositava, uma na outra, de que persistiria uma relação segura de confiança. Revestida de um caráter religioso, essa aliança de fé foi estendida à relação conjugal, na qual o casamento é simbolizado justamente por um objeto cujo nome denota claramente o propósito da fidelidade: a aliança. Em termos políticos, a lealdade e a fidelidade eram os pilares da sociabilidade feudal, pois o "beija-mão" era o ápice do juramento de compromisso entre o vassalo e o Senhor.
    Na Europa dos Séculos XVII, XVIII e XIX, esse gesto foi transformado numa maneira cavalheiresca e formal de cumprimento entre um homem e uma mulher, mostrando elegância e cortesia. Semelhante à devoção da vassalagem amorosa, o ato em si consistia num momento fugaz, porém, intenso, no qual nunca se deveria, de fato, beijar a mão da dama. O cavalheiro deveria apenas se curvar ligeiramente, segurar a mão da dama e aproximar-lhe os lábios, mas não encostar em seu dorso. No Século XX, esse gesto caiu em desuso na maioria dos países, por ser considerado antiquado. Há países, porém, como a Turquia, em que é de praxe beijar as mãos de pessoas mais velhas de ambos os sexos. Esse ritual também persiste nas relações de reconhecimento de autoridade religiosa, como no caso dos católicos, em que os fiéis ainda beijam as mãos dos padres, que beijam as mãos dos bispos, arcebispos e cardeais, que beijam as mãos do Papa, que também são beijadas pelos leigos, como o "ilustre" leigo e muito fiél Berlusconi, flagrado no ato do "beija-mão" papal, na foto acima.
    
    Considerado antiquado pelos "plebeus", republicanos e pouco religiosos, o ato de "beija-mão" persiste na Igreja e no modelo constitucional de Westminster - embora neste caso seja algo meramente alusivo. Aproveitando o ensejo, será que se o plebiscito realizado no Brasil, em 1993, regulado pela lei número 8.624, de 4 de fevereiro do mesmo ano, sobre a forma de governo tivesse dado vitória ao regime monarquista teríamos revivido esse ritual tão caro aos britânicos? Só para completar a informação, o plebiscito ainda colocava em votação a escolha entre presidencialismo e parlamentarismo. Ao lado, os resultados da decisão dos brasileiros sobre a questão.     Pouquíssimos brasileiros foram favoráveis à adoção da monarquia. As abstenções foram elevadas, assim como as porcentagens de votos nulos e em branco. No caso da forma de governo, somam 17,6%; no caso do sistema de governo, somam 14,77%. Se juntarmos os votos em branco, nulos e as abstenções, teremos o que pode ser chamado de alienação eleitoral ou de defecções, cujos resultados foram: 43,3% e 40,47%, respectivamente. Ou seja, um grau elevado de desinteresse pelo tema ou de desconhecimento do que se tratava, ou ainda as duas coisas. Seja como for, os votos favoráveis ao presidencialismo e à república foram expressivos. Provavelmente, nunca mais deveremos ter outro plebiscito sobre a adoção da monarquia, mas, sobre a adoção do parlamentarismo, isso é algo que pode vir a ocorrer. Os adeptos do parlamentarismo no Brasil ainda sonham com a implantação desse modelo político no país, conforme alguns puderam expressá-lo no desenho constitucional de 1988, em parte previsto para funcionar com um sistema parlamentarista.

GOVERNO DE COALIZÃO, HUNG PARLIAMENT. O Conservative Party voltou a Downing Street-10 depois de 13 anos. Mas, sozinho, dificilmente atravessaria as portas escuras do prédio que, desde 1730, é associado ao exercício do governo no Reino Unido [Link para o site da Downing Street-10]. Foi necessária uma full coalition com o Partido Liberal-Democrata para que se chegasse à posição de força política majoritária no parlamento, condição necessária não para indicar o Primeiro-Ministro, mas para garantir um governo estável. Membros do Lib-Dem foram nomeados para o gabinete ministerial, assim como o próprio Nick Clegg, líder do partido, assumiu a função de Vice-Primeiro-Ministro, o que lhe garantirá participação mais ativa no governo. 

    Ambos os partidos tiveram que ceder espaços em suas agendas para que a coalizão fosse possível, mas o fato mais importante é que os liberais nunca tiveram tanta relevância no cenário político britânico desde que deixaram de ser uma das duas forças partidárias mais importantes, ainda no início do Século XX. Além disso, o Lib-Dem conseguiu o compromisso de que Cameron chamará alguma forma de consulta popular a respeito da possibilidade de alteração do sistema eleitoral, para que seja introduzido algum mecanismo de representação proporcional. Abaixo, o documento programático assinado por Cameron e Clegg, que celebra a full coalition.
Coalition Programme

    Apesar da coalizão obtida formal e integralmente, essa é uma situação inusitada e, de certo modo, bastante insegura para os britânicos. Em toda sua história, houve apenas uma experiência de governo de coalizão, num momento muito especial, logo depois da Segunda Guerra, quando as forças partidárias chegaram a um compromisso geral para a reconstrução do país. Já a situação de hung parliament foi enfrentada várias vezes desde a segunda metade do Século XIX, resultando sempre em governos minoritários - aparentemente, a expressão "hung parliament" foi utilizada pela primeira vez pelo jornalista Simon Hoggart, do jornal The Guardian, em 1974.
    Até as reformas eleitorais de 1867 e 1884 [Reform Acts], que estenderam o sufrágio e levaram ao redesenho dos distritos eleitorais, os partidos Liberal e Conservador sempre se revezaram no poder, com governos amplamente majoritários. Mas, já sob a nova legislação, as eleições gerais de 1885 possibilitaram o crescimento do Irish Parliamentary Party, levando à primeira situação de hung parliament. Sem conseguir formar um governo de coalizão, os britânicos fizeram novas eleições gerais em 1886, quando os conservadores voltaram a ter a maioria das cadeiras do parlamento, mas sem atingir o número suficiente para se constituir como força uma partidária com maioria absoluta.
    Até a eclosão da Primeira Guerra, essa situação voltou a se repetir várias vezes, quando houve um interregno do parlamento minoritário até as eleições de 1929. Essas eleições foram importantes por dois motivos: em primeiro lugar, foi a primeira em que foi permitida a participação de mulheres com menos de 3o anos de idade; em segundo lugar, foi a eleição que consolidou a ascensão do Partido Trabalhista como uma das duas maiores forças partidárias do Reino Unido, suplantando o até então imbatível Partido Liberal. Inclusive, os trabalhistas lograram conquistar a maioria das cadeiras da Casa dos Comuns, garantindo o direito de indicar o Primeiro-Ministro - Ramsay MacDonald. Mas, apesar da vitória histórica que realinhou o sistema partidário britânico, os trabalhistas não conquistaram a maioria absoluta das cadeiras e tiveram que instalar um governo minoritário. 
    Em 1974 ocorreria a primeira situação de hung parliament depois da Segunda Guerra. Nessa eleição, os liberais conquistaram muitos votos, desequilibrando o jogo Lab-Con. O Primeiro-Ministro da época, o conservador Edward Heath, tentou permanecer no cargo por meio de uma coalizão com o Partido Liberal, mas suas negociações não levaram à aliança. Harold Wilson, que já havia sido Primeiro-Ministro antes de Heath, acabou retornando ao cargo junto com os trabalhistas. Mas, seu governo minoritário enfrentou várias dificuldades, num período de grande crise econômica mundial. Wilson resolveu então convocar novas eleições para Outubro do mesmo ano, quando finalmente fez com que o Partido Trabalhista conquistasse a maioria absoluta das cadeiras de Westminster
    Agora, nas eleições gerais desse ano, o drama do governo minoritário ameaçava entrar em cena novamente, mas Cameron conseguiu costurar um acordo com o Lib-Dem, de modo a formar o segundo governo de coalizão do Reino Unido. Sua estabilidade deverá ser testada ao longo deste ano. 
    A propósito, uma boa dica de leitura sobre o tema é a seguinte: David Butler (1986), Governing Without a Majority: Dilemmas for Hung Parliament in Britain. Butler era um acadêmico que se enveredava pelo recente mundo do jornalismo televisivo. Sociólogo e cientista político, formado em Oxford, onde também foi professor, juntou-se a outro acadêmico, o sociólogo Robert McKenzie, para analisar as estatísticas eleitorais nas coberturas da BBC de 1950 a 1979. McKenzie, embora fosse canadense, havia se instalado em Londres para fazer doutorado e acabou ficando por lá, vindo a se tornar professor da London School of Economics
 Ambos aperfeiçoaram o famoso swingometer - criado de maneira precária por Peter Milne - e utilizaram esse "aparelho" pela primeira vez na cobertura que a BBC fez das eleições gerais de 1955. Desde então, o swingometer virou a grande atração das coberturas eleitorais da rede pública britânica, passando a ser executado por computação gráfica a partir de 2001, e continua cada vez mais sofisticado, como pode ser notado na cobertura dessa última eleição. Esse "aparelho" mostra ao telespectador a troca de votos e de cadeiras parlamentares entre os partidos. Outra dica: Robert MacKenzie escreveu um livro clássico sobre os partidos britânicos, publicado em 1955, com o título: British Political Parties: The Distribution of Power Within the Conservative and Labour Parties. Tanto esse livro como o de Butler indicado acima podem ser encontrados na Amazon. Ao lado dos livros de Maurice Duverger [Os Partidos Políticos, 1951] e Sigmund Neumann [Os Partidos Políticos Modernos, 1956], esse trabalho de Mckenzie é considerado um dos primeiros estudos sistemáticos sobre as organizações partidárias modernas.
    Na primeira foto acima, o primeiro à esquerda é Butler e, o último, à direita, Mckenzie, na cobertura das eleições de 1979, tendo ao fundo o swingometer. Na foto abaixo, temos uma panorâmica do estudúdio da BBC na cobertura das eleições de 1955, com Mckenzie à frente do swingometer, explicando as oscilações de votos entre os partidos.

OS DESAFIOS DO NOVO GOVERNO. Segundo relatório da Comissão Européia, o déficit público do Reino Unido, que já é o maior dentre os 27 países da União Européia, deverá atingir neste ano a marca de 12% de seu PIB. Uma margem segura seria algo em torno de 3% ou 4%, estourando, 5%. Portanto, a situação econômica dos britânicos é bastante delicada, o que coloca uma séria de desafios ao governo conservador/liberal-democrata. Geralmente, a receita para esses casos é uma política monetária restritiva, o que significa redução drástica dos gastos públicos, o que sempre é muito impopular, como mostram os acontecimentos recentes na Grécia. 
    Preocupados com a crise econômica, e manifestando sua posição historicamente conservadora, o jornal Financial Times e a revista The Economist deram apoio ao líder do Partido Conservador e alertaram seus leitores para o "perigo" de um governo de coalizão nesse momento crítico para a economia do Reino Unido. O Financial Times, inclusive, abriu espaço em suas folhas para o reaparecimento da "dama de ferro" Margaret Thatcher, num artigo de óbvia defesa do programa do seu partido. 
    Na campanha eleitoral, os conservadores responsabilizaram os trabalhistas pela precária situação econômica do país, enquanto os trabalhistas avisaram aos eleitores que se os conservadores voltassem ao poder imporiam corte de benefícios, violando os direitos sociais, como no caso do sistema de saúde. Diante desse jogo de "empurra-empurra", os eleitores, contrariando a preferência do mercado financeiro, "optaram" por um hung parliament, retirando os trabalhistas do governo, mas, ao mesmo tempo, dando uma maioria insuficiente aos conservadores. 
    Quando Thatcher assumiu o governo, em 1979, o enfrentamento da crise econômica daquele período envolveu o retorno às práticas liberais que haviam sido desacreditadas pelo crash de 1929. O mote seguido foi "menos governo e mais mercado". Seriam diferentes as políticas de Cameron para a crise atual? Aquele mote agora soaria um tanto descompassado, em face da crise econômica de 2008/2009, quando coube aos Estados Europeus e Norte-Americano a tarefa de consertar os estragos advindos do mercado desregulado. Em seu discurso de posse, Cameron deu a deixa da "saída pela tangente" desse aparente dilema [Estado ou mercado?]. Segundo ele, caberá agora à sociedade as responsabilidades pelos rumos econômicos do país e que, portanto, o momento demandava que a ênfase deixasse de recair sobre os direitos para se concentrar nos deveres dos cidadãos para com a nação. Claramente, trata-se de um eufemismo para avisar que haverá corte nos gastos públicos, com a consequente redução dos gastos sociais. 
    De certo modo, o déficit público que ajudou a bancar a especulação que levou à crise econômica, e que cresceu ainda mais quando o Estado teve de socorrer o mercado, especialmente o financeiro, surge mais uma vez como os custos com quais toda a sociedade terá de arcar. Sem poder apelar para as soluções de mercado, em crise e "salvo" pelo Estado, e sem poder se apoiar no próprio Estado, também em sérias dificuldades financeiras, sobrou o apelo à sociedade. Caberá à sociedade britânica, portanto, "adaptar-se" aos novos tempos para, como já sugeriu seu ilustre representante, Charles Darwin, sobreviver nesse novo ambiente econômico hostil. Os britânicos terão que aprender rapidamente aquilo que já é algo bastante conhecido dos brasileiros: o "se-virismo". Terão de "se virar" para aguentar as políticas restritivas que estão a caminho.
    O problema é que na Grécia, local onde foi "inventado" o demos, as políticas de redução de gastos públicos e de salários em geral finalmente levaram aquela entidade à Ágora, não aquela da festiva região de Placa, bairro onde fica o sítio histórico da Ágora dos tempos de Sócrates, mas sim à frente do parlamento, localizado bem diante da praça de Sintagma [foto ao lado]. Como, então, o Reino Unido conseguirá, com um governo de coalizão, impor à sociedade as políticas amargas que provavelmente terão de ser adotadas? Se o governo Thatcher, segundo vários analistas, teria levado à redução do Estado, será que o governo Con/Lib-Dem levará agora ao enfraquecimento da Sociedade Civil britânica? Ou será que o próprio governo de coalizão se enfraquecerá e o Reino Unido terá de realizar, em breve, novas eleições gerais? Tenho as perguntas, mas somente os próximos seis ou doze meses terão as respostas.

COMO FICARÁ O MODELO WESTMINSTER? Num livro de referência para os estudiosos de política comparada, o cientista político Arend Lijphart sistematizou as características de dois "modelos de democracia" [que também é título do livro, traduzido em português pela editora Civilização Brasileira]: o modelo consensual e o modelo Westminster. O primeiro seria um modelo constitucional baseado na fragmentação da soberania, atribuindo a vários atores e várias instituições algum naco de poder político para vetar as políticas de outros atores e instituições. Os países com tal modelo teriam um Poder Legislativo bicameral [Câmara Baixa e Câmara Alta/Senado]; sistemas eleitorais proporcionais, produzindo sistemas multipartidários; arranjos federativos bastante descentralizados e assim por diante. Nesses países, o Poder Executivo é formado a partir de coalizões partidárias e as decisões políticas são extensivamente negociadas, inclusive, em alguns casos, com os governos das unidades federativas. Contrariamente, o modelo Westminster, referência explícita ao Reino Unido, teriam governos unipartidários, com Poder Legislativo unicameral. O sistema eleitoral majoritária garantiria o bipartidarismo, necessário à maioria legislativa imprescindível para a indicação do Primeiro-Ministro.

 Mas, depois de vários governos minoritários, desde o Século XIX, depois do realinhamento partidário do final dos anos 1920, quando os trabalhistas suplantaram os liberais, e depois da retomada da votação dos liberais, numa fusão partidária com o Social Democratic Party, em 1988, que resultou no Lib-Dem, como ficaria a suposta eficiência desse modelo no que se refere à produção de maiorias absolutas a um único partido, de forma a garantir um gabinete monopartidário? As demandas cada vez mais eloquentes por uma reforma eleitoral que introduza algum tipo de representação proporcional certamente levarão a maior justiça na representação dos partidos no parlamento [foto acima: parlamento britânico], em consonância com a votação de que já dispõem, sem mencionar que tal modificação incentivará vários eleitores estratégicos a votar nos seus partidos preferidos em primeiro lugar. 
     Tudo isso indica que, se aprovada essa reforma eleitoral, o Reino Unido virá a ter um sistema multipartidário e os governos de coalizão passarão a ser uma necessidade rotineira. Na verdade, o sistema britânico já não é mais bipartidário, pois o desempenho do Lib-Dem, mesmo com sua subrepresentação em função da fórmula eleitoral majoritária, dá claros sinais de um sistema com 3 partidos, ou seja, um multipartidarismo moderado. Portanto, em que medida os britânicos estariam enfrentando não apenas uma crise econômica, mas igualmente uma crise de seu modelo político? Em que medida as adaptações que resultarão das possíveis reformas não criariam rachaduras no "estável" modelo de Westminster, cujas virtudes vem sendo pontuadas desde o seminal trabalho de Walter Baghot, no Século XIX? Estaria o modelo Westminster se dissolvendo para dar lugar ao modelo consensual de governos de coalizões multipartidárias? Como ficará o sistema parlamentarista britânico diante da lógica presidencialista que vem caracterizando cada vez mais seus governos?